Um argumento simples na superfície, um roteiro básico e miríades de reflexões sob a acalmia, aquela ataraxia epicurista do seu entorno filmado. Assisto Paterson como quem ora para seguir vivendo o que se passa na tela, com as variáveis do meu ser poeta e circunstâncias que só distam em gênero e espaço do pouco que se passa com o tanto que se sente ao assistir essa fita necessária.  Paterson, personagem que leva nome de sua cidade, destas arquetípicas localidades da Nova Inglaterra que mais parece Camden onde nasceram Thoreau, Emerson e Louisa May Alcott, mas ainda mais protótipo da alma ianque no condado de Concord onde morreu o São João Batista de toda poética moderna: Walt Whitman. Um motorista de ônibus que escreve poesias, não! Um chofer de aldeia que é poeta com toda seriedade, método, práxis e modo de vida de um poeta que tudo mais é secundário diante da observação do mundo para poetizá-lo. 

A vida de um poeta é sua obra, seu torrão natal é metonímia do universo, o belo Paterson não precisa ir longe: a compreensão da vida brota da intensificação do espírito, não da extensão por deslocamento ou vivência social.  Paterson fareja, rumina na ontologia sobreposta em sutis camadas da aparência prosaica, na repetição visceral, na apreensão telúrica imantada em sua Ítaca com sua Penélope e seu cão. Um casal feito para o experimento, para o lirismo intimista… e que esposa! convergindo com todo élan de poetização do instante que o acompanha. Alguns detalhes primorosos: sem filhos e sem desejo de filhos, sem carro, ele sem celular, atento ao osso da essência do devir capturado.  Como diz Auden: “Todo poema bom é praticamente uma Utopia.” E nada naquela casinha geometricamente quadriculada para o poema tudo conspira para essa conspiração silenciosa de afeto, solidariedade comunal e “carpe diem.” Cada dia é um primeiro passo para a palavra exata, o insight precioso, o verso que justifica a labuta-trajeto: leito de amor, ganha-pão e o bar antológico. Não posso dispensar a referência a Edward Hopper que tudo enquadra e os mestres que sustentam a lira do bardo afortunadamente obscuro: William Carlos William e Emily Dickinson. Sherwood Anderson não daria uma solução melhor para esse filme-conto. 

Poetas devem ser místicos da Fé laica, a Arte.  Entre anacoreta e sibarita, o poeta precisa dum bar como dum templo; de preferência não ter filhos, consumir o básico, abdicar de tudo ou quase tudo que o distraia da elucubração, da pesquisa, do esboço, da obsessão virtuosa pelo poema impossível.  Não me venham dizer que é uma atmosfera melancólica, e atmosfera é muito numa obra. Aura impregnada, placidez talvez, mas nenhuma resignação no cotidiano auto imposto naturalmente a Paterson. Como em Baudelaire um niilismo propositivo, como em Baudelaire a máscara-incógnita, como em Baudelaire “fazer com que de uma fantasia nasça uma obra de arte”. Mas em Paterson temos o sedentário fundamental, o anti-flâneur, o balcão do bar é o limite máximo onde se debruça para a multidão virtual.  Não estou a discorrer sobre estética literária tão somente: este filme é um abrigo, um concerto de câmera, talvez por associação de ideias um arranjo de flores diante a paisagem numa tela de Matisse. 

Não exijam dum poeta cinéfilo uma ficha técnica ou resenha de celebridades:  o máximo que concedo a essa pérola é a beleza íntegra do casal protagonista.  Adam Drive e sua nonchalance, a exuberância contida de Golshifeth Farahani compõem um oximoro que nos apascenta.  Se antanho falava num novo Visconti, num novo Altman, hoje vibro ao assistir um novo Jarmusch e que provocação silenciosa este Jarmusch: sem bytes, pirotecnias, arrastando delicadamente a câmera esfregando no déficit de atenção coletivo a sacralidade do humano, o infinitesimal eloquente, a paleta de cores do horizonte impercebido no néon idiotizante da sociedade de mercado. Não se trata dum filme para poetas, para sensíveis e não acredito serem tão raros.  

A plataforma MUBI prova que cinema e arte ainda podem andar juntos, a fita é só de 2016. O poeta é o eco do primeiro espanto, o protótipo do encantamento do primevo clarão de consciência de nossa solitude diante o infinito. Paterson pode ser todo homem no futuro, ainda é tempo de quando todos serão poetas na atitude senão nas letras. Poema é o que se escreve; poesia, o que se sente. Jarmusch nos propõe experenciar poesia até empunhando um jarro de cerveja. “A poesia nem ilumina nem diverte o burguês. Por isso desterra o poeta e transforma num parasita ou vagabundo.” É o que nos diz Octávio Paz no belíssimo “O Arco e a Lira” primeiro livro me veio à mente quando assisti “Paterson” e já o revi e recomendo no MUBI para outros lobos da estepe. Nem loser nem drunk tão onipresente no cinema americano. 

Nosso Paterson é o que se nega participar do jogo furado que o avilte, que o descaracterize enquanto poeta e ser poeta não é pouca coisa. Um filme para “ler” sem dramaticidade intelectualista, ler o fluxo de criação incessante. É-se poeta todo tempo num simultaneísmo idiossincrático: o gozo da escritura que se desvenda no semblante anguloso de Paterson, na sua estranheza diante do mundinho e seus apetites que não satisfazem a voracidade de outra natureza do poeta.  Sem a efusiva grandiloquência de “Sociedade dos Poetas Mortos”, faz tempo não deparava um produto da Sétima Arte, em que pese Jarmusch, que fizesse tão bem a literatura.  Paterson!

PATERSON

Dirigido por Jim Jarmusch
França, Alemanha, 2016
Drama, Comédia, Romance
Inglês, Português & mais 4
 
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Flávio Viegas Amoreira

escritor, poeta e jornalista, nasceu em Santos, em 1965, mora em São Paulo atuando como agitador cultural pela capital paulista, Litoral e Rio de Janeiro. Considerado um dos mais inquietos escritores da "Novíssima Literatura Brasileira", já lançou 12 livros entre contos, poesia e romance: Maralto (2002); A Biblioteca Submergida (2003); Contogramas (2004); Escorbuto, Cantos da Costa (2005), Edoardo, o Ele de Nós (2007), todos editados pela 7 Letras Editora - Rio de Janeiro; além de livros publicados por editoras paulistas, antologias internacionais até ser incluído na denominada "Geração Zero Zero", reunião de contistas considerados mais representativos da primeira década do século XXI no Brasil, antologia organizada pelo prestigiado crítico literário Luiz Brás e editado pela "Língua Geral", em 2011. O escritor é crítico de cinema, curador de artes plásticas e colaborador com crônicas e ensaios para jornais brasileiros e sites, revistas literárias e publicações estrangeiras. Ligado à música e às artes visuais, já teve vários textos encenados em monólogos e adaptações teatrais. Tem constante atividade nos meios digitais, com importante atuação em sites, blogs e redes sociais com literatura digital e criação online de textos. Contato: [email protected]

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