Era um adolescente, quem sabe um ex-menino ansioso por adulto lendo o mundo com uma engrenagem particularíssima de encanto e espanto pela sutileza de afectos e voracidade de conhecimentos precoces para os padrões convencionais da época e de sempre. Sorte a escola ter um canto sossegado do pátio na algaravia do recreio uma biblioteca imensa sem prepotência no acabamento, farta nos volumes e cálida no acolhimento. Alguns exemplares vetustos que intimidavam, o olhar perscrutador da senhora bibliotecária passada em anos entre o pó do tempo entre os alfarrábios estudantis repostas às gerações perdidas. Apostilas obsoletas, enciclopédias ginasianas, magazines bem-comportados, clássicos brasileiros bem à mostra e não sei por que cargas d’água estantes do que seria inadequado pelo porte filosófico literário para um liceu de província. Província diante do mar infindo, ainda assim acanhada perante o saber das metrópoles, mas com ótima rede pública de ensino e, claro, a biblioteca era habitat natural dum jovenzinho que era escritor sem sabê-lo, intuindo ser escritor, seguindo naturalmente para a literatura visceralmente. Já algum Kafka, já um tanto a pouca conhecida Clarice Lispector, já Victor Hugo, além dos indefectíveis Machado e Alencar.

          Entre tomos num canto menos concorrido encontrei uma edição em formato de bolso do “De Profundis“ que no Brasil tinha sido traduzida como “A tragédia de minha vida” com belo prefácio de Mário da Silva Brito que agora redescubro como melhor historiador da “Semana de Arte Moderna de 22”. Já tinha lido alhures sobre Oscar Wilde quando ainda se falava em “homossexualismo”, categoria patologizada do “amor que não ousava dizer seu nome”. Naquela década de 70 a OMS ainda catalogava o arte entre iguais como doença imagine o peso, a culpa inoculada nesse termo surgido no século XIX : “homossexualismo” quando a psiquiatria engatinhava com todos preconceitos positivistas e eugênicos da era vitoriana… Sem ainda descobrir Gide e Genet foi Wilde um espelho para as inquietações de estranheza introjetada, em Wilde via respostas, em Wilde sublimação, em Wilde um mestre invisível e presentíssimo desnudando a Beleza maior que qualquer preconceito, a possibilidade de viver conforme e confiante os ditames do corpo casado ao espírito a licitude dum amor digno. Naquele mesmo tempo do “Studio 54” , de David Bowie e Elton John quando surgia o termo “gay” era em Wilde que um jovem culto percebia que as veredas do desejo não tinham nada de “alegre” ou frívolo num mundo adverso: foi no “De Profundis” que entendia que como diria Leonardo: “quanto maior a sensibilidade maior o sofrimento, um imenso sofrimento”, parto a fórceps sentir demais, saber demais, intuir demais ainda que esse preço fosse compensado com a profundidade duma poesia que o mantinha no caminho inabalável da Arte… em Wilde maior que a religião de terror um cristianismo compassivo, em Wilde o casamento do céu e da terra ecoando Blake e a ternura de Giotto, em Wilde a crença de que podem nos suprimir tudo menos o infinito da imaginação, o paraíso dos sonhos e o gozo da criatividade… imaginação vida e universo dúplice onde superamos a hostilidade em nome duma normatividade burguesa, o filisteísmo prosaico desprovido de encantos… aliás, filisteísmo termo tão wildeano e nunca tão apropriado aos nossos dias de vulgaridade, consumismo e reacionarismo “escroto”. Com Wilde descobri o fascínio das fabulas em seus contos de ourives, a riqueza psicológica do “Fantasma de Canteville” onde podem perceber que nunca podemos ser reféns do medo: o fantasma metáfora da depressão paralisante, com Wilde exercitei a perícia dos diálogos cortantes e o poder motivador dos aforismas… ao lado de Nietzsche foi maior criador de epigramas lapidares desde La Rochefocauld! Sem o sistemático método de Balzac para o romance e a arquitetura de Proust para a memória, Wilde erigiu uma obra que antecipou o fantástico em Borges e o imaginário de Calvino.

          Wilde mártir do “gay power”, de temas caros aos beatniks e proponente da solaridade dionisíaca matizada com apolíneo estético que dariam na “Era de Aquarius” e num socialismo ecológico que ainda está por vir… Importa lembrar alguns teóricos vitais para o período e que devem ser redescobertos re-contextualizados: Walter Pater e Ruskin antípodas convergentes bem como o louvor de Wilde a um igualitarismo sem excluir a aristocracia do espírito ecoando Platão e Kroptokin que tanto podem dizer a aurora do retorno ao essencial da alma, o anti-consumismo e o advento das ecovilas e comunidades do afeto.  Wilde que conviveu com Whitman e Mallarmé bases da poética em conteúdo e forma, contemporâneo do amor de Verlaine e Rimbaud, admirado por Shaw, Yeats e Gide, mas o importante: Wilde que recusou a fuga que o livraria do cárcere e que liberto não guardou nenhum ressentimento nem mesmo pelo pivô de seu drama, Bosie. Wilde que dá as costas ao utilitarismo anglicano abraçando a plasticidade do catolicismo base de sua Irlanda em breve independente. O mestre do conto fabular, o dramaturgo dos diálogos cortantes e de uma imagética que anteciparia muitas das tendências no comportamento e moda do século que o sucede do surrealismo a androginia passando pelo vintage até as tribos urbanas como os hipsters… e por mais que o personagem tenha fortalecido legiões de não-suicidas pelo exemplo de sua coragem é na obra sua fortaleza e valor: desafio ortodoxos das vanguardas lerem “O pescador e sua alma” com mesma garantia de complexidade do “Finnegans Wake”: por vezes o repto da alma é tão exigente quanto os das formas hermeticamente elaboradas… salve Wilde que salvaste minha vida tantas vezes diante dos preconceitos por poeta e “diferente”…

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Flávio Viegas Amoreira

É crítico e poeta.

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