No princípio era a cócega. Assim começa O Império dos Sentidos: com uma personagem fazendo cócegas na outra. Diferente da masturbação no sexo, não há versão solo das cócegas. Quando mexemos parte do nosso corpo, uma parte do nosso cérebro monitora o movimento e antecipa as sensações que isso causará. Se porventura meu cérebro não tivesse a capacidade de acompanhar, por exemplo, o deslocamento da minha mão até o meu pescoço, eu me faria cócegas sempre que tocasse nesse lugar sensível do corpo, o que poderia me atrapalhar. Se há, então, algum prazer nas cócegas, é um prazer que só posso obter com as mãos de outro. Dois é o mínimo para que você sinta (e faça) cócegas.
A história de O Império dos Sentidos se baseia em Sada Abe, uma mulher que, em 1936, decepou o pênis de seu amante, Kichizō Ishida, depois de o estrangular até a morte durante um ato sexual. Essa história, no entanto, é menos sobre o homicídio e mais sobre o erotismo que resultou nele. Dirigida por Nagisa Ōshima e lançada em 1976, a obra (uma produção franco-japonesa) é um testamento do poder erótico de um casal. Em meados do filme, há uma sequência em que Sada e Kichizō saem pelas ruas chuvosas à noite, ombro a ombro sob um guarda-chuva furado, assustando transeuntes e praticando obscenidades em público. Juntos, eles são superiores. O casal é essa entidade forte porque dois é o número mais próximo da suprema unidade do um; e o um, com toda a sua aparente separação do mundo, é paradoxalmente o número mais distante de si mesmo. É preciso o outro não só para as cócegas, mas para lembrarmos que somos todos um só.
Nas raras vezes em que o casal se separa, há angústia e, no caso de Sada, há o vestir do kimono de Kichizō, e no caso de Kichizō, o vestir do roupão de Sada — índices de unidade para atenuar a insuportável distância. E quando o casal está junto, mas não sozinho, há, de início, a típica ameaça à privacidade — gueixas espiando ou interrompendo o ato amoroso dos dois. Mais tarde, fortalecidos de erotismo, o casal não mais se esquiva ou se esconde de terceiros — seu sexo é escancarado às gueixas, convidadas ao aposento libertino de ambos para tomar parte naquela união, para serem absorvidas pelo casal. Em outra cena, quando uma gueixa idosa vem os servir, Sada solicita a Kichizō que faça sexo com a senhora. O agrado estampado no rosto da gueixa e o desgosto estampado no de Kichizō fornecem o contraste cômico, mas também sinalizam a ação do erótico em sua condição mais arriscada e exitosa: assimilar o mundo indiscriminadamente e dotá-lo de carga erógena.
O cineasta Nagisa Ōshima, em entrevista concedida à época do lançamento do filme, não se refere a O Império dos Sentidos como erótico, mas como pornografia hardcore. É verdade que o sexo explícito e não simulado colocam a obra no campo hardcore, mas a pornografia não me parece o melhor conceito para descrever a estética que regimenta a narrativa. Logo, e a despeito do próprio Ōshima, insisto ainda no erótico. Meu argumento é: o pornográfico lida com a satisfação de desejos sexuais; o erótico lida com o engendramento de novos. O pornográfico preocupa-se em agradar apetites sexuais pré-existentes e bem definidos; o erótico preocupa-se em alargar esses apetites, os redefinindo ou nunca os definindo por completo. O alargamento da sexualidade é corolário do erótico; a reiteração dela é corolário do pornográfico. O Império dos Sentidos é erótico tanto para o público quanto para suas personagens porque expande desejos estabelecidos e atreve-se a positivar repulsas e indiferenças arraigadas. Reduzindo seu repertório estético, a narrativa do filme desafia as preferências do público pois oferece só o erotismo como via de apreciação, incitando a recomposição de nossas próprias sexualidades; o casal da história, por sua vez, desafia suas preferências ao transformar nojo, perigo e tabus em tesão, ao recompor-se em novas e movediças fronteiras sexuais.
Poucos filmes se comprometem tão concentradamente com um regime estético (ou aspecto dele) como O Império dos Sentidos. Penso em Operação França (1971), de William Friedkin, e suas variações em torno do ato de perseguir, ilustrando com nitidez o mecanismo que move todo drama (um sujeito perseguindo um objeto, enfrentando obstáculos pelo caminho). Penso no desconhecido filme britânico The Appointment (1981), de Lindsey C. Vickers, e seu suspense dilatado que rarefaz as particularidades do medo (algo ruim vai acontecer, mas não sabemos o contorno ou a natureza desse “algo”). E penso no franco-canadense Mártires (2008), de Pascal Laugier, e sua violência implacável (as sequências exaustivas de tortura dão destaque às propriedades de opressão e desalento do horror).
Mas todos os três filmes operam na chave dramática — no balanço entre êxitos e fracassos (Operação França), no adiamento das resoluções (The Appointment) ou na supressão das expectativas por resoluções vitoriosas (Mártires). Em O Império dos Sentidos, a chave é outra. Os obstáculos (quando há) não competem com os intensos desejos que dominam as protagonistas. Em vez de conflito dramático, encontramos soft limits (termo do universo kink para uma prática sexual na qual uma pessoa hesita em se envolver, mas que, sob certas condições, ainda pode consentir). Assim, a progressão narrativa do filme se configura não como uma série de reveses e êxitos, típica do dramático, mas como um alargamento gradativo dos limites brandos de Sada e Kichizō, num movimento mais ou menos consciente de absorverem o mundo e se absorverem mutuamente.
Importante para se pensar essa progressão narrativa erótica (em oposição à dramática) é o fator da intimidade. Sêmem e sangue menstrual, urina e lágrimas são fluidos compartilhados entre Sada e Kichizō em diferentes marcos da narrativa, assinalando a evolução erótica do casal no que se refere a uma intimidade mais e mais profunda, mais e mais indiscriminada. E não são apenas fluidos. Sada e Kichizō habitam o mesmo aposento por dias a fio, compartilhando espaço, tempo e odor — detestável aos outros, mas não aos dois, que além de se acostumarem ao fedor como alguém se acostuma ao próprio mau cheiro, também afirmam o mau cheiro como algo prazeroso. O acesso gradativo às coisas íntimas do outro (como fluidos e mau cheiros) por meio da sexualização delas fornece um modelo para pensarmos a experiência do erótico nas artes narrativas. A intimidade erótica, desenvolvida narrativamente, culmina no acesso cada vez mais irrestrito ao corpo e às emanações corporais de outra pessoa; contudo, penso que seu platô ou clímax (em oposição ao drama, tão moldado em torno da atividade sexual arquetípica e heteronormativa) reside não no acesso consumado ou findo, mas no acesso consentido — a pergunta “Eu posso?”, seguida de uma permissão, é a mais erótica de todas as coisas.
O que leva essa história a eventualmente terminar onde todos terminamos. “Não se preocupe comigo, apenas divirta-se”, diz Kichizō a Sada após uma sessão de asfixia. “Mesmo se te matar?”, pergunta Sada. Quase sem forças, Kichizō consente com a cabeça. “Tudo bem, eu te mato”, declara ela. No incansável erotismo de O Império dos Sentidos, há espaço, então, para apreciarmos a obra numa outra chave — a do trágico. Trágico não tanto pela morte de Kichizō ou pela vida de Sada após o crime, mas sim pela imagem final de um corpo desejoso, outro inerte, lado a lado; unidos e separados — da cócega (de um em outro) ao êxtase da morte (de um só). Ao fim e ao cabo, ainda solitariamente dois.
Caetano Barsoteli
é dramaturgo, poeta, tradutor e educador, além de cinéfilo inveterado. É autor da peça Mesa para um (em processo de publicação) e da coletânea de poemas em língua inglesa Poems because you hurt and others just because (2023; Amazon). Assina artigos sobre escrita teatral no blog dramaturgias.substack.com.