Um filme que representa aula de adaptação, fenômeno de ousadia dum esteta entre os Beatles e o desbunde, uma obra arquitetônica que vemos e revemos por novos ângulos, aliando sensação e intelecto percebendo excessos mas nenhum déficit diante do livro onde se escora indo além. Morte em Veneza (1971) de Luchino Visconti faz 50 anos e só ganha corpo em nossos tempos esvaziados de significação sólida e sacralidade diante da Arte e de pensamentos genuínos. Não se espera um filme como este com ansiedade de ‘blockbuster’, não se convidam amigos para alternar sua expectação com burburinho crepitante de pipoca: o clássico de Visconti exige uma reverência em selecta companhia à altura duma peça de piano de Webern ou uma novela de Unamuno: reverência, disse, não gravidade posada. Afinal Veneza não é cenário qualquer: para além dos estereótipos caramelados para casaizinhos ‘fofos’ compartilharem ‘selfies’, Veneza liquefazendo-se em significados desdobráveis, terra de passagem, imbricação de mundos e culturas díspares, luxúria e patologia. E temos Mahler! quando decidiu fazer de Gustav Von Aschenbach um compositor ao invés de escritor laureado na novela de Thomas Mann talvez deliberadamente Visconti melômano, Visconti dos maiores diretores de ópera do seu tempo tenha já percebido poder da mise-en-scène com essa transposição de função no personagem. Pontifico sem temor de grandiloqüência que o ‘adagietto’ da Quinta Sinfonia de Gustav Mahler é um personagem na fita, escorrendo sôfrego em dó sustenido entre os miasmas da ‘maladie’ pateticamente dionisíaca do esteta transido. A escolha de Dirk Bogarde para a composição de Aschenbach é caso à parte. Quem sabe Luchino tenha pensado de novo em Burt Lancaster como tinha feito no supremo Il Gattopardo de 1963. No que escrevo estas linhas revejo um ‘western’ (quanto nos ensinam os westerns!) dirigido pelo mesmo Burt Lancaster: The Kentuchian, – no Brasil com risível título de Homem Até o Fim.  

Se a internet serve para disseminar cretinos, o YouTube deve servir para ‘arqueologia cinéfila’… Que poder de entrega tinha Lancaster, animal instintivo sem igual para Hollywood adaptável ao melhor cinema europeu. Existe a sensação de inevitabilidade do destino, o ‘tinha’ que ser Dirk Bogarde, intérprete mais adequado à precariedade do Aschenbach que sucumbe ao Tadzio de Bjork Andresen, quem sabe carregado nas tintas da androginia. Exaustiva seleção para o Tadzio nas telas, encontrar o jovenzinho que melhor encarnasse a beleza trágica impressa por Mann com as idiossincrasias de minudências do aristocrata milanês nas telas. Existem alguns ótimos documentários sobre Visconti e precisamente sobre Morte em Veneza pela BBC e a RAI: La vita come um romanzo é um dos melhores disponíveis na internet.

Numa época que precede em muito a febre dos ‘making off’, parece que Luchino pensava na confecção com esmero de alguém que sabia estar sempre erigindo catedrais cinematográficas. Qualquer filme dele é produto dum demiurgo consciente de sua ourivesaria, quiçá mistagogo iniciado nos ritos da beleza arquetípica resgatada em natura. Para percorrer a obra do diretor e artista pleno recomendo Le feux de la passion escrito por Laurence Schifano, das melhores biografias do milanês. Aqui no Brasil teve uma caprichada edição da Nova Fronteira nos anos 80 e sempre volto a ela para beber de novo de tanta beleza. Beleza por sinal é ao lado de desejo os dois conceitos chave de Visconti. O filme intensifica ainda mais o propósito de Mann de elaborar um verdadeiro tratado estético, com todas suas implicações paradoxais, ambivalentes. O movimento pendular de razão extremada e medo do abismo do desejo, o apelo mefistofélico da Beleza desconcertante da juventude, as antinomias do intelectual germânico com os chamados da península tórrida é levado ao paroxismo na chegada ao Gran Canal, na caracterização de Aschenbach, no ambiente mundano do “Hotel de Bains” até o dilacerante desfecho de Tadzio apontando para o horizonte celeste no poente da vida. Tadzio escolhido a dedo como disse mimetizando em Visconti a fissura pelo demoníaco e angelical, luciferino digamos Tdazio carregado de tintas dos efebos de Caravaggio. Tanto de Proust no filme inspirado em Thomas Mann: afinal Luchino é último espasmo surgido da “Belle Époque” quando se passa a trama que poderia bem ser transportada para algum tempo entre a Aids e o advento da nova pandemia.  Rapsódia ou tragédia da imolação:  é de longa tradição esse conceito da tragicidade inoculada em toda beleza além das medidas humanas habituais. Dostoiévski e Wilde inauguram longa galeria de grandes autores a discorrer sobre o abismo com janelas para o paraíso.

Atenham-se, leitores, aos detalhes, o drapejado de cada enquadramento, os circunstantes: clowns, o zombeteiro tocador de acordeon, a mãe de Tadzio encarnada pela deslumbrante Silvana Mangano, o ‘sfumato’ dos panos de tule ou da cortina de fumaça impregnadas da cólera pelos becos pútridos sob o palácio dos doges… nenhum naco dessa obra-prima que não seja metáfora dalgum lance do medievo, da renascença, de nossos dias transmodernos. Dispensa lembrar os reducionismos paupérrimos de interpretação: a homoafetividade e nem de longe qualquer transtorno enlaçam o cerne da estória… o decadentismo é inerente à distinção do aristocrata da alma em meio ao vulgo, ao burguês mercantil, aos preceitos puritanos: o protagonista é a Beleza sob o espectro da indeterminação, a inatingível Beleza estonteante dum erotismo sublime. Quando chegada às vias de fato a degradação é eivada do obsceno convencional da prostituta ao dandismo degradante escaldando o rosto de Aschenbach de tintura de cabelo.

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Note o nome do “ferry-boat” que perfaz a travessia a Veneza de Canaletto: “Esmeralda” que remete à outra trama, a sifilítica rameira de Doutor Fausto. A decadência não é pela consecução, faz-se pela transcendência do artista diante da mesquinhez mal percebida do seu tempo. Logicamente em Aschenbach a tentação por superar seu cotidiano ordenado e sufocador incorpora signos do ‘spleen’ tardio enquadrado de ‘art-noveau’. Afinal inescapável não citar Nietzsche que domina toda essa atmosfera: “O grau e o tipo de sexualidade de um ser têm repercussões até nos cumes de sua espiritualidade.” Tadzio é o compósito de toda pungência da beleza (‘kallos’/koiné’ que se promete, duma felicidade não prá já, dum além do momento, da hora que não se presentifica ainda que se anuncia, que fulge sem se deter em sua iridescência. Desmedida contida em âmbar ou madrepérola. Reúna um grupo seleto, voltemos ao espírito de cineclubismo: assistir Morte em Veneza pede um Chianti e muita elucubração para harmonizar…

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Flávio Viegas Amoreira

Escritor, poeta e crítico literário. Colunista da seção "Terra em Transes" da Revista Piparote.

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