Na tentativa de resgatar do caos da
memória violentada as lembranças afetivas, históricas e literárias, os
cinquenta e um mini-contos presentes no livro “Apesar de você, eu conto”
(2022), do escritor e poeta Flávio Viegas Amoreira, resistem pelos recursos da
era digital ao isolamento provocado pela pandemia e ao embrutecimento neoconservador
promovido pelos raivosos em acabar com tudo do presente, modificar de forma
tosca e grosseira as leituras e os sentidos do passado. Publicada agora pelo selo
paranaense Kotter editorial, a obra recria em suas histórias a acelerada
linguagem das redes virtuais e a brevidade e fragmentação das relações
contemporâneas, tratando de personagens que lidam com temas como perda,
sensação, melancolia, tempo, memória, conforme busca de passagem demonstrar em
leitura próxima aos contos essa nota fresca à publicação da obra. Caótico,
litorâneo, Amoreira monta sua biblioteca elencando uma série de autores como
Dante, Kafka, Proust e Borges para, em frenesi de luta, armar trincheira
contra a violência moral e institucional desses tempos, compartilhando experiências
diversas de quem viveu os agitos políticos e culturais das décadas passadas, e sobretudo
resistindo à exclusão feita pelas mitificações narratológica e padronizada de
ídolos e eras de ouro em nosso presente.
Desde o título, o livro, de um lado, nos
faz lembrar o tom provocador da clássica canção “Apesar de você” de Chico
Buarque, outro que se aventurou recentemente pelo conto no livro “Anos de
chumbo” (2022); Por outro lado, os contos entram em sintonia e coro com uma
produção cultural mais recente, dessa vez a canção “Não vou deixar”, de Caetano
Veloso, onde clamam pelo mesmo sentido de luta e resistência os compositores
baiano, carioca e o poeta santista frente aos latidos da ultradireita fascista.
Em “As histórias do terceiro de Flávio Viegas Amoreira”, Alessandro Atanes
destaca, num texto de seu blog – Estante do Atanes, a imbricação desses âmbitos
histórico e pessoal. Segundo o escritor e pesquisador da literatura portuária
santista, os textos tecem arcos que vão, por exemplo, do “desbunde dos anos
1970 ao fim da Ditadura militar”. Para mencionar um deles, “Foi no Vale” é um
“contículo”, como quer o autor, que trata das Diretas-já e de seu efeito e
lugar em seu imaginário: “janeiro de 1984 naquele fim de comício pelo
diretas-já ecoando nas ruas que cortavam os fundos da sé atravessou o vale foi
com os amigos para as bandas da praça dom josé gaspar naquele rebuliço que
soava orgasmo coletivo”, rememora o narrador: “eram uns quinze que vinham meio
juntos até aquele boteco ao lado da mário de andrade uma tarde fodida de linda”
(AMOREIRA, 2022, p.31). Essas ausências de pontuação gráfica comum, sem
vírgulas, pontos, parágrafos, travessão, letras minúsculas na maioria dos casos
– exceto quando se trata de pessoas mais íntimas ao narrador-personagem – esses
aspectos conotam, como também mostra Atanes, uma forma aparentemente despojada
e com pontuação inusual que desafia a sintaxe comum do leitor. No entanto,
podem ser lidas ainda como expressão de quem, a poder transgressor e libertário,
quer narrar seus dias difíceis e rememorar como pode essa vida passada, para assim
tentar seguir em frente e viver melhor: “Pois o importante, para o autor que
rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de
Penélope” (BENJAMIN, 1980, p.37), diz Walter Benjamin, ao tratar da memória e construção
da tessitura textual no texto “A imagem de Proust” de 1929 retomado adiante.
Numa espécie de enciclopédia caótica, as histórias de Amoreira embaralham a
própria linearidade da escrita e leitura padrão do leitor médio brasileiro, além
de sua confusa profusão de referências que o ajudam a lidar com as temáticas
eleitas no texto.
Nos contos, é notável como as dificuldades
dos narradores em se manterem bem após as perdas de amores, amigos e
referências políticas são de vários âmbitos, e trazem importantes consequências
temáticas e formais. A Divina Comédia, diria o poeta Antônio Barreto, anistiado
político e autor do livro “Poemas para serem lidos em voz alta” (2018), essa
obra de Dante é um tratado sobre perdas. “Mirian não me sai da cabeça nesse
carnaval mudo da cabeça esperando Roberta voltar das compras”, é dito no conto
“Foi em Orly”: “onde Mirian em minha vida enquanto espero roberta (…) onde me
perdi com Mirian no tempo…” (2022, p.147). Mirian e Roberta são personagens
como a Beatriz de “Dante”, título do primeiro conto do livro, versões da mulher
ideal, etéreas e fugidias na memória do poeta e contista Amoreira, e assim
geradoras desse sofrimento amoroso. Mas o que são esses afetos tristes que
passam pelo narrador e estão presentes tanto naquelas vivências reais quanto
nessas atuais ao momento da escrita e virtuais ao da leitura? Trata-se da
melancolia, nossa e sua, que “desde os vinte e seis anos (…)”, ele diz, “que
não chamo depressão vazio que suplanto com poesia (…) amor por minha
melancolia para fertilizar apesar de tudo amor” (2022, p.63-64). Se o narrador ama
de forma melancólica, e se está melancólico por falta de amor, melancolia e
amor parecem então se entrelaçar. Esse triste refletir e ansiar profundo parte
de sua relação amorosa com homens e mulheres que arrebatam como ondas sua
trajetória enquanto seguem na deles, para o autor enfim desembarcar em seus
devaneios poéticos: “eu falando de poesia beat meu comportamento beat (…) eu
tinha banzo de sampa banzo da teodoro sampaio (…) sempre estive a espera do
espírito de rapazes lindos dum parnaso impossível” (2022, p.77). Se há uma
origem natural desse banzo melancólico na literatura de Amoreira, ela não vem
dos rios, como na obra rosiana, e sim dos mares: “mas nem tudo intelecto éramos
nascidos diante do mar isso muda as coisas soltos desgarrados mas com eterno
banzo pelo mar” (2022, p.90). Como uma espécie de triste Ulisses preso à ilha
da deusa Calypso, na leitura de Olgária Mattos, esse narrador é constituído e
atravessado por essa melancolia originada na também mítica baía de Santos, sua
cidade natal, espécie de Ítaca ausente rememorada pelo escritor desde Sampa.
Numa chave social, sua melancolia também se
revela e se mistura na indignação com as ausências, exílios e perdas de figuras
importantes da cena política por conta do A.I.5 do regime ditatorial militar em
1968: “eternamente indignados com o brasil putos com o exílio de Paulo freire
Darcy ribeiro do Glauber indignados num tempo que havia esperança apesar da
eterna indignação” (2022, p.123). E, sobretudo, quando narra a ocasião do
assassinato do guerrilheiro da resistência Carlos Marighela, e sua rememoração
do fato de ter estado próximo à cena do crime: “naquela noite ‘mataram um
homem’ descobri melhor vi tudo melhor na memória quando fui fazer matéria para
o jornal onde estagiava ‘mataram Marighela’ sim era na alameda casa branca…” (2022,
p.139). Amoreira, ao modo kafkiano, busca também relatar em sua trajetória
pessoal a violência dos processos histórico-político, e a necessidade de
resgatar desse trauma a memória daqueles que resistiram através da luta pela
vida. “Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela foi, e
sim uma vida lembrada por quem a viveu” (BENJAMIN, 1987, p.37), diz Benjamin.
Novamente a memória e o processo de narrar tem um lugar na lida com essa
melancolia e na constituição de relatos diversos sobre os eventos traumáticos do
país.
Seguindo
na linha social, essa melancolia persiste ainda hoje, e não só do fato de as
minorias serem tanto fisicamente quanto mental e espiritualmente forçadas pelos
neoconservadores a voltar aos seus armários, mas sobretudo de essa tristeza se
atualizar na razão de sermos impedidos do direito de narrar nossas memórias,
vivências e compartilhar no espaço público nossos mundos sensíveis distintos. “um
acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao
passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave
para tudo o que veio antes” (1987, p.37), completa Benjamin. Se o ser humano
vive enquanto narra, como diria Sherazade nas Mil e uma noites, é,
portanto, contando a alguém que se possibilita a cena do diálogo, como
complementou Mikhail Bakhtin lendo Dostoiévski. Em seu décimo quarto livro,
Amoreira quer, assim, resgatar do limbo da tortura fascista, à maneira
proustiana, suas temporalidades e sensibilidades, reais ou virtuais, vividas
nas últimas décadas, consagrando, assim, esse direito ao partilhar a todos tais
vivências afetivas.
O rarefeito oxigênio cultural de nossa
época sufoca os personagens em seus relatos, violentados pela grosseria e
maledicência na vida política: “naquele tempo até os reacionários tinham bom
senso” (2022, p.122), ele lamenta num dos contos. Num tempo de violência, morte
e barbárie, resistir contra afetos tristes como a melancolia e o desencontro
amoroso não é tarefa fácil, e gera consequências que desgastam ainda mais a
humanidade de seus narradores: “eu que digitalizei a vida por cansaço de tanta
burrice & desamor” (2022, p. 104). Há alguma coisa kafkiana nessa canseira
e tolice que a vida pública produz no indivíduo. É quando a melancolia, não
mais só histórica, se desloca de âmbitos distintos e se agudiza nele. “Lukács
pensa em períodos históricos, Kafka em períodos cósmicos” (BENJAMIN, 1987,
p.139-40), disse Walter Benjamin no texto “Franz Kafka” sobre os deslocamentos
de forças e tempos nestes autores. É daí que advém mais forte a melancolia como
sensação de perda de algo que não se sabe onde, quando e nem como se inicia, e
o cansaço decorrente desse afeto e sua espera interminável, como na trajetória
dos próprios personagens kafkianos: “nunca esquecerei os olhos de Henrique em
minhas pupilas cansadas de tanta utopia lutando agora contra um governo ainda
mais filho da puta” (2022, p.66). Embora pareça não ter saída, é em todo caso na
escrita que ele encontra ar, evasão e troca vital e cultural com os virtuais
leitores.
Outro aspecto que melancoliza os
narradores dos contos é a desimportância social da arte e dos artistas num
tempo de mistificação, ignorância, violência e barbárie: “imagine eu que nunca
fui recebido porque nos trópicos onde vivo escritores poetas dramaturgos atores
pensadores são os últimos em prestígio nos salões onde pontificam sertanejos
pagodeiros caga-regras televisivos” (2022, p.51). Trata-se da falta de prestígio
e valor vital da arte, e a exclusão dos artistas da vida econômica, social e
cultural do país metaforizada em sua ausência nos salões. Tema e tom proustiano
por excelência. Já foi tratada essa relação entre melancolia, amor e exclusão
por um pensador como Merleau-Ponty, mencionado num dos contos: “Deve-se dizer
que o amor é essa necessidade ciumenta ou que nunca há amor, mas apenas ciúmes
e o sentimento de ser excluído?”, se pergunta o filósofo francês no livro “Conversas”
sobre a obra de Proust: “Essas questões (…) são constitutivas do que chamamos
de amor” (2022, p.70), ele responde aqui, para noutra obra refletir melhor. “Mas
o que é gostar de alguém? Proust diz a propósito de um outro amor: é sentir-se
excluído dessa vida, querer entrar nela e ocupá-la inteiramente” (2022, p.570),
diz o filósofo em sua “Fenomenologia da percepção” (1945). Embora excluídos e
afetados pela melancolia, Amoreira e sua literatura, porém, não deixam de estar
sempre prontos aos chamados livres do amor, da vida e da arte, pois se colocam
abertos ao presente, sem mitificar o passado, a burguesia e a elite: “trocaria
a porra do jantar família empresa não por tesão tardio mas por algo legitimo
feito a ‘madeleine’ do tempo resgatado por sua pele contando estória do tanto
vivido e que ele me contaria como resolveu seu lance” (2022, p.110), ele diz em
“O aplicativo”. Poderia dizer dos contos de Amoreira o que Benjamin disse de
Proust: “Esse desiludido e implacável desmistificador do eu, do amor, da moral,
como o próprio Proust se via” (BENJAMIN, 1987, p.44), ficando, assim, se não
redimido, pelo menos poupado de mais sofrimento.
Como vemos, nos contos de Amoreira –
leitor de Borges – essas fronteiras que separam a vida pessoal e os eventos
históricos em vivências e períodos estão borradas, permitindo com que tais
forças transitem nesse mundo entranhado da sua nossa sensibilidade humana. É
hora de anotar algo sobre a obra como um todo. O livro, disse Borges numa
conferência na Universidade de Belgrano em 1970, é uma extensão da memória e da
imaginação. Dentre as temporalidades, esse pensador do tempo especula ao longo
de sua obra sobre como o passado é aquela instância que mais se transforma, em
razão da (re)leitura atualizante que pelos afetos do presente fazemos com os
eventos caotizados do passado na memória, de onde se forja a própria ideia de
desmistificação do passado, tão discutida e peculiar na escrita do argentino. “Ted
você percebeu que somos movidos por sensações e atmosferas” (2022, p.29), diz o
narrador. Noutro trecho do mini-conto “Rascante”, ele é mais explícito: “agora
revendo dor & glória amodóvar que tanto diz de mim o meu sentimento por
Fred voltou quando nos conhecemos na passagem de borges por são-paolo auditório
da folha”. A obra é uma espécie de narrar de resgate de suas misturadas
memórias afetivas, literárias e também cinematográficas: “éramos antes e depois
de qualquer injunção do tempo dormimos nus num antro da kasbah era uma noite de
Antonioni” (2022, p.27). O autor traz ainda os registros de pontos de encontros
de jovens contracultura de uma cena paulistana em ebulição: “peças de artaud encenadas
em garagens para os lados do bom retiro” (2022, p.28), além de um frenesi
de luta, leitura e cultura que assusta e desnorteia na diversidade de tantas
referências distintas: “além de revolucionários, liamos castaneda escondido
herman hesse” (2022, p.65). Na
palestra denominada “El libro”, Borges diz que “[d]e los instrumentos del hombre,
el más asombroso es, sin duda, el libro”. Escrita pelo poeta e
ensaísta Cláudio Willer na contracapa da obra, a metáfora de “monstros
literários (…) que assustam passantes desavisados” ilumina e reforça ainda
mais essa breve ilação crítica em forma de nota sobre o livro de Amoreira.
Leitor de Lucrécio e Espinosa, outros com
os quais aprendeu a desmitificar e se desviar dos fantasmas do psiquismo e do idealismo,
Amoreira, em “Apesar de você, eu conto”, trata, enfim, do rememorar em efeitos fictícios
das potentes forças e vivências afetiva, histórica e literária como resistência
aos fantasmas fascistas do apagamento, da exclusão e da violência em nossos tristes
tempos nos trópicos. Como sugere ainda o escritor argentino, e se lêssemos o
livro de Amoreira, com essas recordações misturadas nos conteúdos, juntas na pontuação
e simultâneas na forma, como uma breve série de sonhos? Se rememorar o passado
for mesmo projetar nosso mundo onírico, os sonhos de um, como disse Borges,
podem ser os de todos. Certamente não seria a leitura ideal, mas poderia ser
uma delas, e isso não é pouco nos dias atuais. “Tomar un libro y abrirlo guarda la posibilidad del
hecho estético”, diz o contista argentino. Há experiências artísticas
diversas com o livro de Amoreira, os demais leitores também poderão fazer as
suas, dizer e melhorar a recepção futura e promissora dessa obra, já que “los lectores han ido enriqueciendo el libro”,
conclui Borges. Que cada um se entusiasme com as leituras aqui e encontre e
note outras releituras acolá.
Referências
AMOREIRA, Flávio Viegas. Apesar de você, eu
conto. Curitiba: Kotter Editorial, 2022.
ATANES, Alessandro. As Histórias de terceiro de
Flávio Viegas Amoreira. Acesso em 28 de Julho de 2022. Link: https://santaportal.com.br/noticias_blog/as-historias-do-terceiro-de-flavio-viegas-amoreira/?fbclid=IwAR1DiZWNVvmHA2Se2VxY6C4YqZ0nONnptTezyIjxYRIDseN7nMPaOX87ZWc
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de
Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5.
Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
política. Tradução. Sérgio Paulo Rouanet. 3ª edição. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987.
BORGES, Jorge Luis. Borges Oral. Barcelona
(Espanha): Editorial Bruguera, 1980.
MATOS, Olgária C. F. “Melancolia de Ulisses: a
dialética do iluminismo e o canto das sereias.” In: Sentidos da Paixão. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987. Acesso em: 28 jul. 2022.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas – 1948.
Organização e notas de Stéphanie Ménasé. Tradução Fábio Landa e Eva Landa. São
Paulo: Martins Fontes, 2004
Fenomenologia da percepção. Tradução:
Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2ª. ed. São Paul: Martins Fontes, 1999.