Para mim, toda a literatura é política. Como todo o ato criativo. Até – ou sobretudo – aqueles que se dizem não-políticos. A “não política” é “outra política”, do mesmo modo que a “não ideologia é “outra ideologia”. Em geral, os defensores da arte apolítica ou os que dizem não gostar de ideologias costumam, na vida real, ser condescendentes, no mínimo, com as forças políticas conservadoras e até fascistas. Mas muitas vezes é simples equívoco.

O escritor português Luís Castro Mendes tem, a propósito da poesia e, portanto, de toda a literatura, uma frase lapidar: – “A poesia é a afirmação plena da liberdade por sobre todas as formas de negação da vida e da criação que nos envolvem e oprimem”. Numa palestra que proferiu este ano (2021) na Fundação Mário Soares, em Lisboa, ele rebateu categoricamente, pois, o juízo de alguns de que “a poesia não se deve ocupar da política”. 

É fundamental esclarecer, entretanto, que a natureza política da arte e da literatura não significa que a sua temática tenha de ser explícita e declaradamente política e muito menos que o seu sentido ou posicionamento ideológico tenha de ser unívoco. Nada disso.

Como toda e qualquer atividade humana, a literatura tem de ser analisada de acordo com o seu contexto (histórico, geográfico, político-ideológico, sociológico, cultural, etc.). Por isso, é tão político dar espaço e voz, nos textos literários, a grupos sociais desfavorecidos e marginalizados, rompendo deliberadamente o cânone ocidental abusivamente imposto por Harold Blum, como escrever poesia experimental ou erótica num contexto caracterizado pelo predomínio ou imposição de uma visão baseada, por exemplo, no “realismo socialista”.

Ou seja, e como afirmou Fernando Pessoa, citado por Luís Castro Mendes, “a regra restritiva da censura (não se pode dizer isto ou aquilo) não pode ser substituída pela regra estalinista (tem de dizer isto ou aquilo)”. Pessoa, lembre-se, era conservador em alguns aspetos, mas, em termos de criação, era, vou dizê-lo, um assumido libertário. Os seus múltiplos heterónimos são disso um indicador contundente. 

Evidentemente, qualquer escritor pode decidir escrever sobre que tema e perspetiva ele bem entender. Mas essa escolha deve ser rigorosamente pessoal e não imposta, seja por governos, partidos ou ativistas, seja por editores, críticos literários, jornalistas, influenciadores (eles gostam de ser chamados influencers) e, claro está, o deus-mercado.

Como autor africano e angolano, sou, assumidamente, tributário de uma linhagem de literatura política e decolonial que caracteriza, desde a sua formação, todas as literaturas africanas (escritas). Para os autores africanos inaugurais, surgidos nos séculos 18 e 19, a literatura sempre uma arma de oposição ao domínio europeu.

Este, note-se, não era apenas militar, político ou económico, mas também cultural. Por tal razão, e apenas para dar o exemplo angolano, os escritores que, agrupados no Movimento Vamos Descobrir Angola, em meados do século 20, contribuíram para o surgimento da literatura angolana moderna definiram como sua missão primordial lutar pelo resgate da cultura popular e “tradicional” (as aspas impõem-se, aqui, pois tal cultura é comprovadamente contemporânea), leia-se africana, das populações angolanas, em contraponto à tentativa de “europeização” levada a cabo pelos colonizadores.

Mas, mais do que isso: os autores em questão usaram igualmente a literatura para confrontarem politicamente o colonialismo português. Muitos deles, inclusive, participaram na luta política e militar que conduziria Angola à independência, algumas décadas mais tarde, como aquele que se viria a tornar o líder desse combate: o médico e poeta António Agostinho Neto.

Essa estreita relação entre literatura e política é, repito, um traço comum a todas as literaturas africanas, talvez até ainda hoje. Mesmo quando certos autores o dizem renegar. A verdade é que renegam as práticas atuais daqueles que, uma vez chegados ao poder, após a derrota do colonialismo, enterraram as antigas utopias, as quais, por conseguinte, não faz mais sentido continuar a cantar. Não será isso, rigorosamente, um ato político?

De facto, os primeiros sinais de desencanto com as independências africanas, mas também certas mudanças culturais trazidas pelo advento do neoliberalismo e da globalização, como o acirramento do individualismo, o cinismo e o cosmopolitismo, começaram, a partir do fim dos anos 70 e princípio dos anos 80, a questionar esse tipo de literatura politicamente comprometida. Alguns leitores passaram a reclamar uma literatura mais “inovadora” formalmente, o que, sendo toda a literatura “forma” (linguagem+estrutura), denota um preconceito de base: para eles, a literatura política estará impedida de ser formalmente inovadora, o que, como se sabe, não é verdade. Por outro lado, a ambição da novidade leva muitas vezes ao “novo pelo novo” ou à “originalidade a qualquer preço”, o que – digo-o sem receio – esteriliza o potencial de comunicação de toda a arte, matando a autêntica criatividade.

Atualmente, a literatura parece voltar a ser “militante”, superando uma certa ilusão assética e andrógina trazida, no fim do século 20, pela corrente reacionária do pós-modernismo, que, alinhada com a globalização do capitalismo, advogava uma espécie de “universalização” que pretendia fazer tábua rasa de todas as diversidades e “autenticidades”. Em contrapartida, a defesa quase feroz da “diversidade” é hoje a grande bandeira, em todos os domínios. O cosmopolitismo, agora, parece caminhar para uma espécie de colagem de identidades e particularidades, postadas lado a lado, sem qualquer diálogo entre elas.

Assim, o que os leitores parecem esperar hoje dos diferentes autores é que tomem posição ou pelo menos participem e contribuam para as novas expressões literárias “identitárias”, que visam, supostamente, reescrever a história da literatura. O que as editoras, os jornais e revistas literárias e os festivais e outros eventos exigem dos escritores não são apenas livros, mas livros “adjetivados” (enquadrados?): livros negros, livros feministas, livros gays, livros trans, livros queer, livros interseccionais, enfim, o que sei eu?

Por ser justo, reconheça-se que, em determinados momentos históricos e em contextos estruturalmente discriminatórios, os sujeitos e grupos sociais marginalizados (negros das várias diásporas espalhadas pelo mundo, mulheres, indivíduos segregados por causa da classe, do género ou da sua opção sexual e outros) têm toda a legitimidade para, entre outras táticas, usar a arte e a literatura para lutarem em prol das suas causas e contra a discriminação de que são em vítimas. Isso pode ir da produção até à distribuição, divulgação e promoção (por exemplo, criação de editoras ou coleções temáticas, livrarias especializadas e outras iniciativas). A luta pela visibilidade, sob o capitalismo (isto é, a luta pelo mercado), é uma luta feroz e não existe outro caminho senão usar os seus recursos e procedimentos para enfrentá-la.

Aqui, impõem-se duas notas. Primeiro, a decisão de usar a literatura para promover causas deve ser uma decisão rigorosamente individual, dentro da liberdade criativa de cada autor. Segundo, a grande causa pela qual vale a pena lutar é a plena igualdade entre todos os seres humanos, isto é, a luta para construir uma verdadeira “humanidade compartilhada”, para usar a expressão da escritora britânica de origem nigeriana Bernardine Evaristo; assim sendo, as diferentes lutas pelo reconhecimento, visibilidade e direitos dos vários grupos discriminados, ou seja, as várias lutas identitárias atualmente em curso não devem perder de vista esse horizonte, o que só é possível indo além do taticismo e não perdendo a perspetiva de classe.

Lembre-se que a divisão do mundo entre explorados e exploradores ainda não acabou, pelo contrário, tem-se agravado dramaticamente. Mas, quanto a mim – vou dizê-lo, sem receio de qualquer polémica -, as novas militâncias, assumidamente identitárias, parecem por vezes perder de vista a imperiosa necessidade de todos nós, seres humanos, nos conhecermos e articularmos mutuamente, a fim de podermos compartilhar verdadeiramente a nossa humanidade.

Não tenhamos dúvidas: a fragmentação infinita das lutas (os novos “tribalismos”) corresponde aos interesses do atual e hegemónico capitalismo financeiro, sendo estimulado por ele, como o demonstra, apenas para dar um exemplo, a sua estratégia de transformar militantes em celebridades. Há muito tempo, afinal, que Che Guevara virou t-shirt, a qual pode ser comprada em qualquer butique em qualquer ponto do mundo.

Seja como for, é preciso reconhecer que o crescimento daquilo a que podemos chamar as novas literaturas políticas é também fruto das lutas sociais que ocorrem em todo o lado, com todos os seus méritos e limitações (uma delas, repito, é serem tendencialmente baseadas mais nas identidades e menos na classe). Há, pois, como que uma relação dialética entre essas lutas e a emergência, na cena literária, de novos autores e novos temas, traduzindo a vigorosa emergência das novas reivindicações e demandas que caracterizam os tempos atuais.

Deixei para o fim, propositadamente, a observação mais importante que é imperioso fazer, quando se aborda a relação (tão velha como a história da humanidade) entre literatura e política: a literatura politicamente engajada não pode, em momento algum, deixar de ser literatura. Esta nutre-se da vida e de todos os olhares especializados que os homens desenvolvem sobre ela, mas não se transforma em nenhum deles. O olhar da literatura sobre o mundo e a vida é um olhar próprio, multiforme, assente ao mesmo tempo na memória e na utopia, mas transfigurado e expresso pela linguagem. Literatura é, acima de tudo, linguagem. Não é história, sociologia, política ou qualquer outra disciplina “racional” com que tentamos estudar o mundo. E muito menos manifesto. E, menos ainda, simples panfleto.

Na velha maka [discussão, problema] entre conteúdo e forma, fico com Bakhtin: – “O conteúdo está na forma”.

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João Melo

Escritor, jornalista e consultor de comunicação, nasceu em 1955, em Luanda (Angola), onde fez os estudos primários e secundários. Estudou Direito em Coimbra (Portugal), licenciou-se em Jornalismo em Niterói (Brasil) e fez o mestrado em Comunicação em Cultura no Rio de Janeiro (Brasil). É membro fundador da União de Escritores Angolanos e da Academia Angola de Literatura e Ciências Sociais.

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