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“A Voz e o Verso” – Por José Francisco Botelho

“Mr. Laurence Olivier can play many parts. Romeo is not one of them. His voice has neither the tone nor the compass and his blank verse is the blankest I ever heard”. Essa passagem é de uma crítica teatral da década de 1930 e diz mais ou menos que “Mr. Laurence Olivier é capaz de interpretar muitos papéis. Romeu não é um deles. Sua voz não tem nem o tom nem o ritmo certo, e seu verso branco é o mais vazio que já ouvi”. Existe aí um trocadilho entre dois sentidos da palavra “blank”: pois “blank verse” é o verso branco, ou verso sem rimas, usado na maior parte da peça (embora haja também sonetos, parelhas rimadas e prosa); mas “blank” também quer dizer “vazio, enfadonho, inexpressivo”. Ora, por que o autor da crítica achou “vazia” a interpretação do grande Laurence Olivier? Vejamos.

Essa encenação de “Romeu e Julieta” ocorreu em 1935 e foi dirigida pelo também grande John Gielgud. Ocorre que, na época, o costume dos palcos era declamar Shakespeare de forma mais ou menos musical. Os versos não eram ditos, eram cantarolados: o próprio John Gielgud décadas depois admitiu que, ao menos em uma ocasião, entregou-se à tendência de recitar Shakespeare como se fosse “uma diva na ópera”. Mas Laurence Olivier queria introduzir um tipo de interpretação mais naturalista — e por “naturalista” eu quero dizer o seguinte: que o verso seja pronunciado não como um epigrama, mas como algo que foi sentido naquele momento pelo personagem. O segredo aí é incorporar o ritmo à emoção, em vez de submeter a emoção ao ritmo.

O mundo ainda não estava preparado, talvez, para essa abordagem de Shakespeare. Por isso a interpretação de Olivier “flopou” (“it was a terrible flop”, na palavras dele). Porém, essa abordagem do verso como algo naturalmente surgido a partir da emoção — como se o modo natural e imediato da expressão da alma fosse em versos — seria crucial para as adaptações de Shakespeare ao longo do século XX: digamos, do “Hamlet” dirigido pelo próprio Olivier, em 1948, até o “Macbeth” feito por Joel Coen em 2021. A interpretação de Macbeth por Denzel Washington se liga diretamente ao Romeu flopado de Laurence Olivier, encenado mais de 80 anos antes.

Assistir às adaptações cinematográficas de Shakespeare é essencial não apenas para quem se interessa por sua obra, mas para quem deseja compreender as funções da poesia e o caráter original do verso métrico, que não precisa ser martelado para ser sentido e cujo poder jaz numa relação orgânica com a fala, ou seja, na manifestação dos ritmos do corpo: a respiração, o pulsar do sangue, o piscar dos olhos. Existe um ritmo em tudo o que fazemos e é esse ritmo que o verso pede. Os repentistas brasileiros bem o sabem. O repente para funcionar depende da verossimilhança do que é dito, como se aquelas coisas só pudessem ser ditas daquela forma: como se o próprio instante falasse.

O fato de que uma discussão sobre a melhor forma de interpretar os versos de Shakespeare se estenda dessa forma entre 1935 e 2022 e o fato de que eu possa associar essa questão a um fenômeno popular típico do Brasil são evidências de que Shakespeare é nosso contemporâneo. Seus versos continuam não apenas ao nosso redor, mas à nossa frente, transformando-se com o passar do tempo e talvez zombando de nossa obsessão cronológica. Os mortos continuam falando; nós é que precisamos descobrir como transformar sua fala silenciosa em voz.

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José Francisco Botelho

Nasceu em Bagé, em 1980. É jornalista, escritor, tradutor, crítico de literatura e cinema, havendo colaborado com diversos veículos de circulação nacional

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