O grande cinema é feito pelo diretor, essa regra quase invariável diz-nos da ‘literatura do filme’: seu conceito, marca de espírito, poeticidade inoculada nos meandros de imagem, ritmo, trama, se necessária a trama. Ambientação, atmosfera, fotografia, impacto causado no receptor pela outras variáveis: os amplos planos de David Lean, o rosto de Bette Davis, a pungência dos temas de Pasolini, a força de um livro de Dashiell Hamett ou Thomas Mann são presentes nas mãos dum condutor seguro. Quão difíceis as adaptações dum Proust ou dum Borges ou mesmo de nossa Clarice Lispector!
Assisti a uma produção da Netflix esta semana que me fez refletir imenso sobre tema e direção bem depois. Com título de western antigo, “First they killed my father” é uma fita, falo fita por hábito de antanho, trata de um regime que se notabilizou por peculiaridades macabras num país carregado de fascínios. Recordo-me, adolescente, da primeira nação comunista invadida por outra sob mesmo sistema: era Natal de 1978 e tentava entender os meandros da Guerra Fria. Naquela passagem de ano o delirante “Khmer Vermelho” liderado por um louco de pedra de nome Pol Pot caía para o bem dum povo exangue e derrotado pelas tropas do Vietnã de matiz soviético e dum comunismo mais previsível.
O filme baseado nas memórias dilacerantes duma sobrevivente, a bela Loung Ung, é dirigido por outra beldade: a mítica Angelina Jolie, mas trato aqui de cinema denso e não frivolidades! Não sucumbemos ao esteriótipo de diva de Angelina: ela tem imenso mérito em resgatar um dos maiores genocídios da História com sobriedade à altura do desafio de narrar o horror advindo de uma hipotética utopia. Uma sociedade agrária radical, a coletivização não só dos meios de produção, mas de famílias, sonhos, sentimentos, tudo em nome dum maoísmo ensandecido controlado pelo núcleo duro do Partido: “a angkar”, organização que tutelava o sistema ainda que com meios canhestros e erráticos. Cidades evacuadas, escolas e hospitais fechados e perseguição a qualquer traço de ‘fragilidade burguesa’ ou desvio intelectualista. Muito mais que na horrenda “Revolução Cultural”, Pol Pot dizimou 20% do seu povo: não procurem calcular o incalculável… vítimas preferidas foram estudantes, artistas e intelectuais; quem tivesse um livro em casa; e me recordo que usar óculos era indício certo para execução.
A obra de Jolie é vista pelo olhar arguto, quase felino de uma menina: as crianças enxergam matizes e cristalizam na essencialidade. O filme oferece o básico dessa hecatombe infernalmente ‘pedagógica’ pela busca do ‘grau zero’ das ideologias, os desvios do almejo pela ‘libertação’ e o “terra arrasada” ‘purificador’ que leva as taras ao status de operação sócio-política. Ótimas interpretações, não é um documentário, é um filme ainda que lastreado naquela meia década dos anos 70 que levaram ao paroxismo os desdobramentos da “Guerra do Vietnã” naquele pedaço tão delicado do planeta. A antiga Indochina com seu velho esplendor de civilizações entrecruzando o hinduísmo e o budismo com templos dourados e antigas cidades tomadas pela selva. O regime de Pol Pot, não bastasse o holocausto de seu povo, esmerou-se na destruição dos vestígios da belíssima era ‘khmer’ queimando a maior biblioteca sobre essa dinastia que dominou a Indochina na Idade Média ocidental. Angkor, considerada a maior metrópole do globo – enquanto a Europa sucumbia às trevas do medievo -, ainda deita vestígios no que sobrou da fúria do tempo e dos morticínios.
Enquanto assistia ao filme, relia a obra de Andre Malraux, o célebre escritor francês, aventureiro e Ministro da Cultura do gaullismo. Malraux, sinônimo do intelectual ativista, protótipo do escritor existencialista em ação, deu-nos obras-primas como “O Caminho Real”, depois de escrever sobre a China em “A Condição Humana”, e ressaltou para a modernidade o fascínio que o Camboja de todos tempos reflete para os apreciadores da estética intertextual: as cores, os modos e o saber advindos de Angkor.
Recomendo veementemente essa cápsula de todo aquele período, cápsula eloquente, e não esquecer: Jolie mantêm o filme cambojano em língua khmer e atores nacionais. Tanto a dizer, mas me concentro no âmago: não basta ser de esquerda, é preciso nunca perder de vista ser humano.
Flávio Viegas Amoreira
Escritor, poeta. Colunista da seção "Terra em Transes" da Revista Piparote.