A beleza salvará o mundo.
Príncipe Michkin – O Idiota – Dostoiévski

 

 

Duzentos anos hoje de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e ele nunca foi tão vidente quanto em nossa era carente de significação, perdida de sacralidade, oca de epifanias, os encantamentos que nos redimem em parte de todo sofrimento. Descobri-o por conta própria num canto obscuro da imensa biblioteca do Colégio Canadá: era Crime e Castigo e não me venham falar que os 14 anos de adolescência são nossos melhores dias… Aquele romance terrífico pela lucidez me abriu a cabeça para os temas essenciais para o resto da vida. A consciência, esse mistério e seus subterrâneos, a culpa, a expiação, a compaixão em toda sua magnitude redentora, a primeira catarse duma mente inquieta escrita pelo mais poderoso escritor desde Shakespeare. Só o monólogo de Hamlet diante do crânio de Yorick se iguala ao pungente poema do Grande Inquisidor em profundidade filosófica introduzida em ficção. O bardo inglês e o atormentado profeta russo erigiram as mais olímpicas e abissais arquiteturas dramáticas delineando o conceito da tão decantada “natureza humana” como a conhecemos desde os gregos.

Ainda na adolescência Fiódor revelou-me a verdade contundente do cristianismo visceral num conto doloroso que recomendo-o em tempos de miséria quase “czarista” que vivemos no tal neo-liberalismo: A Árvore de Natal da casa do Cristo. Vale como condensação de todos os evangelhos. Sem concessões ao estilismo formal, extravagante, é pelo conteúdo a sublevação psicológica de Dostoiévski. As atmosferas densas e opressas, os personagens alinhavados com esmero, a tensão e até o humor, nele tudo se rende à mensagem grandiloquente diluída nas estórias que fascinam por si,  acrescentando-nos a pedagogia do espírito.  O que o mundo busca que não esteja contido em sua obra? Redenção pela beleza, senso de humanidade, combate ao materialismo vão e ao diabo da indiferença? Memórias do Subsolo revelou-me manifesto angustioso pela autodescoberta corrosiva mas libertadora: ambiguidade, dúvida iluminadora, desconfiança da razão, foi-me redentor ao aprender conviver com defeitos na busca por aprimoramento.

Dostoiévski: um companheiro imaginário a quem sempre volto: é a busca, a entrega, a reflexão obsessiva sem o alívio de julgamento. Nunca me permiti uma abordagem acadêmica ao lê-lo, sempre me envolvi num ato de amor, espectador de abismos, leitor de nossa tragédia e tentativa de algum afago acolhedor. Sem raiz, jogado no fluxo consumista de coisas e gentes, o homem transmoderno tem em Fiódor seu “avatar” perfeito. Indique Dostoiévski a um jovem, o conduza pelos labirintos, o primeiro Dostoiévski a gente nunca esquece. Curiosidade é o maior legado e ele nos sacia do questionamento de quase tudo. Comece pelo mais belo tratado sobre amor e resiliência:  Noites Brancas. O sofrimento e a sobrevivência a ele são seu grande motivo e não são nossos grandes temas? Saúdo Fiódor como um íntimo pedindo licença para essas linhas ao seu maior ‘expert’ brasileiro: meu amigo Edson Amâncio. Leia-o!

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Flávio Viegas Amoreira

crítico, poeta e escritor

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