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“Dente Canino: família, violência e liberdade” – Por Júlio Bonatti – Plataforma MUBI

O filme grego Dente Canino (título original: Κυνόδοντας/Kynodontas), de 2009, foi o terceiro longa-metragem dirigido por Yorgos Lanthimos. Com ele, o jovem diretor ateniense chegou a ganhar o prêmio francês Un Certain Regard, como melhor filme, além de ter sido indicado ao Oscar em 2010 ao prêmio de melhor filme estrangeiro.

Desde então, aclamado pela crítica de cinema pela narrativa instigante e perturbadora, Dente Canino se tornou uma referência fundamental no trabalho de Lanthimos para construir um fio de Ariadne em sua obra, abordando de forma polêmica e desafiadora os limites das normas sociais, adentrando os corredores mais obscuros da psicologia humana.

O desenrolar da história, basicamente, se constitui em torno de um núcleo familiar, explorando tabus e outros aspectos trágicos que as relações de poder domésticas podem desvelar. As atuações se revelam excepcionais: cada um dos cinco principais atores revelam uma intensidade e incorporam um comprometimento com o seu papel. Eles não têm nomes, são chamados apenas pela função que desempenham no aparelho familiar: os pais (Christos Stergioglou e Michele Valley), excelentes em transmitir uma mescla perturbadora de controle, manipulação e distanciamento; a filha mais velha (Angeliki Papoulia), o filho (Hristos Passalis) e a filha caçula (Mary Tsoni), que assumem os seus lugares em uma trama restrita às experiências intramuro da casa, enquanto navegam pelas complexidades de suas vidas vigiadas e totalmente dominadas por um mundo criado pelos pais.

 

Na tentativa de manter sua família isolada, os três filhos já jovens foram protegidos da sociedade exterior durante toda a vida. Os pais manipulavam seus filhos por meio de uma série de regras e conceitos fictícios, criando uma realidade distorcida dentro dos limites do lar. O diretor tece uma narrativa evocando simultaneamente perplexidade, choque e fascínio mórbido trazendo elementos de incesto, abuso sexual e jogos que envolvem os limites do corpo, a punição violenta e o descobrimento reprimido do gozo num simples gesto de lamber o ombro da irmã.

Poderíamos dizer que Dente Canino busca uma exploração simbólica do ambiente familiar por meio de seus temas de absurdo existencial, alienação, dinâmica de poder e as complexidades da liberdade possível dos filhos. Ao levar à cenografia esses elementos, o filme induz o espectador a refletir sobre os aspectos trágicos da condição humana diante dos seus parentes mais próximos, da natureza do controle e da autoridade parental até nas brincadeiras aparentemente mais simples. Os pais ensinaram aos filhos que eles só estariam verdadeiramente prontos para sair de casa quando perdessem o dente canino. Essas metáforas do “dente” e do “cão” dialogam com a violência das personagens e até mesmo como elas se relacionam com os animais no filme: do cachorro da família que foi levado a um adestrador profissional ao filho que mata um gato no quintal, aos pais obrigando os filhos a imitarem cachorros ou testarem a resistência física ao extremo. É importante ressaltar o detalhe da figura do gato, pois os pais criaram a história de um suposto irmão dos filhos que vivia fora dos muros da casa, e ele havia sido morto justamente por um gato.

 

Essa atmosfera de uma sensação perturbadora da vida na casa se aprofunda com o método de iniciação sexual do filho: o pai contrata uma mulher para ter relações sexuais com o jovem. Diferentemente das outras personagens, a moça tem nome: Christina (Anna Kalaitzidou). Desse contato inicial com o filho, Christina se torna um elemento desestabilizador dentro da casa, pois acaba se relacionando com a filha mais velha numa troca de favores sexuais por certos objetos do mundo exterior, como uma fita de videocassete. A partir dos problemas causados pela presença de Christina à ordem doméstica estabelecida, como uma “má influência” externa, ela acaba substituída pela filha mais velha no papel de provedora do prazer sexual do filho homem, ou seja, um estupro consentido e organizado pelos pais. Eles usam essa tensão e a manipulação sexual como forma de manter a autoridade sobre os filhos, num ambiente de violência iminente.

Com as constantes situações e diálogos absurdos, como a própria definição arbitrária pelo pai do significado de algumas palavras, o confinamento dos jovens reflete as barreiras psicológicas impostas por microssistemas opressivos como a família e a fortuita rebeldia, que expõe a fragilidade da psique humana quando confrontada com a possibilidade da liberdade. Isso vemos na cena em que a filha mais velha, no clímax da história, arranca o próprio dente canino a golpes e se esconde no porta-malas do carro do pai para poder fugir.

Enfim, ao expor tabus familiares e os métodos particulares de educação dos filhos, ou melhor, de “criação” dos filhos, Dente Canino força o seu público a confrontar verdades incômodas sobre o potencial de abuso e controle dentro de um ambiente tão trivial como a casa. Ou seja, dentre todos os possíveis temas que podemos destacar ou que gostaríamos de nos aprofundar numa abordagem desse filme, talvez o sentido mais nu esteja em enxergar o quão violenta é a relação de poder entre pais e filhos, muitas vezes uma relação de propriedade. E, ainda que a fuga da filha mais velha no final do filme represente a revolta e a liberdade, ela o faz nos padrões impostos pelos pais: arrancando os caninos, pois só sem eles podia sair de casa. Assim, ao subverter a dinâmica familiar tradicional e expor a fragilidade das normas estabelecidas, Lanthimos desafia os espectadores a reavaliarem sua própria compreensão das estruturas de poder e as consequências da supressão da individualidade.

Em tempo: com o seu entrelaçamento único de absurdo, desconforto e alegoria, dos desdobramentos de atuação em Dente Canino cabe destacar o papel brilhante desempenhado pela atriz Angeliki Papoulia (a filha mais velha), que também esteve em outros filmes de Yorgos Lanthimos, como Alpes (2011) e O Lagosta (2015). Ademais, Lanthimos pôde aprofundar a cenografia polêmica do entorno familiar de Dente Canino em seu outro filme O Sacrifício do Cervo Sagrado (2018).

DENTE CANINO

KYNODONTAS | ΚΥΝΌΔΟΝΤΑΣ
Dirigido por Yorgos Lanthimos
Grécia, 2009
Drama, Cult, 97 min
Grego
Português & mais 6
 
Picture of Júlio Bonatti

Júlio Bonatti

É doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos, tendo realizado parte do seu projeto como pesquisador visitante na School of Languages and Applied Linguistics da Open University, Inglaterra.

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