Assisti “Close” (2022) já intuindo o que assistiria e não era para me surpreender, queria reafirmar minha impressão da saída da infância passando pelo purgatório de descobertas e injunções da adolescência. Remeto ao prefácio de Sartre para o clássico cult de Paul Nizan: “Aden, Arábia”. O mestre existencialista crava sem dó como sempre: “Não me venham dizer que a juventude é a melhor idade.” Eu mesmo relembro catando cacos dos equívocos, medos tolos, desperdícios amorosos e, claro!, o script kármico de ser gay, poeta, ‘diferente’ crescendo sob o tacão duma cinzenta ditadura tropical.
Entrei na delicadeza flamenga sem os alaridos dum Manuel Puig ou Almodóvar feito o surpreso ouvinte de uma rapsódia ou sarabanda numa madrugada melancólica. Planos longos, tomadas incisivas, closes avassaladores, alguns instantâneos domésticos de Vermeer em Delft; que lindeza contundente para refletir contidos sobre o preconceito nossos-dos-outros de cada dia. Lembrei-me de Montaigne e seu definitivo da “Amizade”: “Nas relações entre pais e filhos é mais o respeito que domina. A amizade nutre-se de comunicação… Nossa afeição pelas mulheres, embora proveniente de nossa escolha, não poderia comparar-se ‘a amizade’, nem substituí-la. O calor da amizade estende-se a todo nosso ser; é geral e igual; temperada e serena; soberanamente suave e delicada, nada tendo de áspero nem de excessivo… a amizade cresce com o desejo que dela temos… eleva-se, desenvolve-se e se amplia na frequentação, porque é de essência espiritual, e a sua prática apura a alma.”
Montaigne imortalizou o tema com o ensaio dedicado a La Boétie. Assim seguiria o amor entre espíritos que se falam não fosse o julgamento introjetado derivado da normatização, o gelo cortante de toda sensibilidade aquietante, a companhia que nos basta, a afeição em toda sua inteireza. O diretor Lukas Dhont aposta na delicadeza como superposição metalinguística dessa fraternidade pungente e acerta no distanciamento calculado. Levou “Grande Prêmio do Júri de Cannes”, ainda um jovem cineasta que o MUBI proporciona ser conhecido e olha que desde mesmo com fim da pandemia não é qualquer sala que nos convida a trocar a intimidade para esmiuçar todo ‘phatos’ que dilacera nossa incerta descoberta da vida. Voltando a Montaigne: “Que significa afinal esse amor de amizade? O desejo de uma concepção espiritual devia ser o principal: a beleza física não passaria de acidente. Enquanto for clarividente, não encontrarei nada comparável a um terno amigo. Por que se envergonhar? Por que deixar de chorar tão querida alma? (…) assim decidi não mais participar de nenhum prazer, agora que já não tenho aquele com quem tudo dividia.”
Lukas Dhont praticamente estreante me impactou como os primeiros François Ozon. Um argumento que carrega toda mis-en-scène num encadeamento preciso, sem arestas ou excedências. Como na elaboração de um conto que preza pela concisão reveladora nos substratos, tudo aí deriva de semblantes, minudências, esgares, gestualidade calculada. Como não lembrar de “Amizades particulares”, de Jean Dellanoy, ou de certa forma de “Billy Elliot”, de Stephen Daldry? Poderia desfiar uma plêiade de fitas homólogas em maior ou menor medida, mas “Close” calibrou com disposição e objetividade naturalista enfocando de modo rascante e sem concessões a pieguice possível do rito de passagem peculiar. Segue o amor de Montaigne a La Boétie: “Ó irmão, como sou infeliz por te haver perdido! Contigo pereceram de um só golpe todas as nossas alegrias e esse encanto que tua suave amizade deitava em minha vida. Desde que não és mais, disse adeus ao estudo e a todas as coisas da inteligência. Não poderei mais falar-te e ouvir-te? Nunca mais te verei, então, ó irmão mais caro do que a vida! Ah, ao menos amar-te-ei sempre”.
Nenhuma diluição, nenhuma tergiversação, a fita vai ao fulcro, nele se concentra, inegável o travo amargo em nossas consciências, um par se desfaz pela anuência ou passividade leniente para com a anti-pedagogia dos afetos legítimos entre iguais. Assisti cúmplice do diretor-roteirista por todos ângulos com sensação de ‘eu conheço o homem, eu estive lá’. Minha sorte foi ter lido Wilde e Gide precocemente, ter enfrentado os ditames da hipocrisia, ainda que com hercúleo malabarismo para não sucumbir ao desatino do jovem Rémi. Lembrai de Davi e Jonatas, lembrai de Aquiles e Pátroclo, evocai a amizade de Tennyson e Arthur Harlam e a comovente fraternidade do genial Alan Turing com seu colega de classe Christopher Marcom! Não julgar, não enquadrar em categorias que Foucault desconstruiria, é o afeto em sua dimensão pura. “Close” para pensar.
Flávio Viegas Amoreira
escritor, poeta e jornalista, nasceu em Santos, em 1965, mora em São Paulo atuando como agitador cultural pela capital paulista, Litoral e Rio de Janeiro. Considerado um dos mais inquietos escritores da "Novíssima Literatura Brasileira", já lançou 12 livros entre contos, poesia e romance: Maralto (2002); A Biblioteca Submergida (2003); Contogramas (2004); Escorbuto, Cantos da Costa (2005), Edoardo, o Ele de Nós (2007), todos editados pela 7 Letras Editora - Rio de Janeiro; além de livros publicados por editoras paulistas, antologias internacionais até ser incluído na denominada "Geração Zero Zero", reunião de contistas considerados mais representativos da primeira década do século XXI no Brasil, antologia organizada pelo prestigiado crítico literário Luiz Brás e editado pela "Língua Geral", em 2011. O escritor é crítico de cinema, curador de artes plásticas e colaborador com crônicas e ensaios para jornais brasileiros e sites, revistas literárias e publicações estrangeiras. Ligado à música e às artes visuais, já teve vários textos encenados em monólogos e adaptações teatrais. Tem constante atividade nos meios digitais, com importante atuação em sites, blogs e redes sociais com literatura digital e criação online de textos. Contato: [email protected]