Aulas de literatura
russa: de Púchkin a Gorenstein apresenta um rico material que, se não
propriamente um panorama das letras russas, está muito próximo disso. Há desde
textos dedicados aos românticos, como Aleksandr Púchkin e Nikolai Gógol, até
aos contemporâneos, como Ióssif Bródski e Serguei Dovlátov. A antologia reúne ensaios e resenhas
de Aurora Fornoni Bernardini escritos ao longo de mais de
trinta anos e publicados em prestigiosos jornais e revistas. Suas leituras
atentas de Púchkin, Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev, Tchékhov e outros
escritores seminais do século XIX oferecem elementos para que os leitores se
familiarizem com momentos decisivos e conceitos-chave da Era de Ouro da cultura
russa. O capítulo de Dostoiévski é especialmente fecundo, incluindo uma
entrevista com Joseph Frank, o mais conhecido biógrafo do escritor. Não menos
profícuos são os artigos sobre grandes poetas de vanguarda e modernistas, como
Velimir Khlébnikov, Marina Tsvetáieva e Daniil
Kharms. Com requinte e originalidade, uma das mais renomadas tradutoras e
ensaístas do Brasil analisa algumas das mais arrojadas experiências estéticas
do início do século XX. Esta antologia celebra a arte russa e o percurso de
Aurora Fornoni Bernardini, desde o colegial “cativada por aquele estranho mundo
de estepes nevadas e corações ardentes”, percurso que se mistura com a própria
consolidação da crítica e tradução literária dos artistas e teóricos russos
entre nós. Ao lado de Boris Schnaiderman no curso de russo da USP, Aurora
Bernardini formou dezenas de alunos e, também como ele, deixa um legado
inestimável ao jornalismo cultural e ao ambiente intelectual brasileiro
Foto (1879): Konstantin Shapiro
Trecho do capítulo
“Algumas questões fundamentais na vida e obra de Dostoiévski”
retirado do livro “Aulas
de literatura russa: de Púchkin a Gorenstein”, de Aurora Fornoni
Bernardini
De fato, relendo hoje romances como Crime e castigo e O
idiota — que na constelação de obras de Dostoiévski figuram como talvez os
mais importantes de sua fase madura (1864 -1868) — , o que se observa é
justamente esse caráter extremado nas ideias e paradoxal nos sentimentos, ou
vice-versa, conforme as personagens em questão.
Extremado nas ideias, como o Raskólnikov de Crime e
castigo, ou nos sentimentos, como o príncipe Mýchkin, o herói de O idiota;
mas a regra do jogo é essa exacerbação: ou se aceita, ou não se aceita. Sabendo
que os “parâmetros extremos” da existência passam pelo mito ou pelo absurdo,
Dostoiévski os incorpora no príncipe Mýchkin — mescla de Cristo e Dom Quixote,
conforme a consagração da crítica, e cuja atuação como personagem focalizaremos
aqui — e cria, no meio de tantas ideias-forças, crises, contradições, etc., a
figura que ele mais amou, a portadora de sua mensagem última ao homem livre
russo, ou a portadora da “verdade universal” toutcourt, conforme ele a
sintetizou, um ano antes de morrer, em seu discurso em homenagem a Púchkin
(para quem estava sendo inaugurado — lembramos — um monumento, em Moscou, em
1880).
Para chegar a essa verdade, Dostoiévski vai aplainando o
caminho, vai derrubando os obstáculos que lhe surgem pela frente. Dependerá a
verdade de fenômenos exteriores? Deverá ela ser buscada em outras terras, nas
terras europeias, por exemplo, com sua sólida organização histórica, com sua já
estabelecida vida social? Ou mesmo longe da vida mundana, junto à natureza
selvagem?
Não. “A verdade não está fora de ti, mas em ti mesmo.
Reencontra-te em ti mesmo, submete-te a ti mesmo, torna-te dono de ti, e verás
a verdade. (…) Se te venceres e te humilhares, tornar-te-ás livre como nunca
imaginaste, iniciarás a grande obra de dar a liberdade aos outros e conhecerás
a felicidade, porque tua vida se encherá e tu compreenderás finalmente teu povo
e sua santa verdade”, afirma Dostoiévski (1984) no referido discurso.
(…)
Título: Aulas de literatura russa: de Púchkin a Gorenstein
Autor: Aurora Fornoni Bernardini
Organização: Daniela Mountian e Valteir Vaz
Prefácio: Arlete Cavaliere
Editora: Kalinka
Capa: Daniela Mountian
Edição: 2018, 1ª edição
Número de páginas: 436
Aurora Fornoni Bernardini
Aurora Fornoni Bernardini é professora, escritora e tradutora. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). Atualmente é professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: daquela estrela à outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O exército de cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Indícios flutuantes — poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo sob o fogo: confissões (Ed. Martins, 2008); em 2007, foi vencedora do prêmio Jabuti (terceiro lugar) também pela tradução de Indícios flutuantes; em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os sonhos teus vão acabar contigo”: prosa, poesia, teatro, de Daniil Kharms (Kalinka, com Daniela e Moissei Mountian).