A diretora francesa Justine Triet faz de Anatomia de uma Queda, Palma de Ouro no Festival de Cannes 2023, uma obra-prima que subverte o clássico filme de tribunal.

O plano geral mostra uma cena comum em todo chamado filme de tribunal. Estamos diante do cenário de um julgamento. Em um degrau acima dos demais, a juíza e, concluímos, também os jurados. Acusação e Defesa na mesma altura, e só se destacam quando estão com a palavra porque falam em pé. As testemunhas dão seus depoimentos sentadas ao centro. Vemos a ré em uma posição de destaque, praticamente no mesmo nível da juíza. Como em todo julgamento aberto, temos, claro, a plateia.

De repente nosso olhar escrutina o plano geral, e ainda mais os planos fechados, à procura de algo que parece não interessar muito à câmera nesse cenário de tribunal. Sentimos um estranhamento e não sabemos ainda bem a razão. Quando a montagem da sequência fica mais dinâmica, com planos gerais e cortes mais intercalados, dos planos médios para os closes, e essa edição assume o clássico propósito de nos guiar ao possível entendimento, começamos a tatear o que estranhamos. Aos poucos nos damos conta do que estranhamos nessa sequência em que ora vemos a ré, ora vemos os advogados, ou a plateia atenta, ou os comentários da juíza. Os cortes dos planos nunca destacam os jurados – não vemos suas reações, não percebemos o que podem estar pensando diante daquele julgamento, que já aprendemos com o próprio cinema que são de fato um embate de narrativas.

Com esse estranhamento percebemos aos poucos que não estamos assistindo a um filme de tribunal comum. Muito pelo contrário. A diretora francesa Justine Triet faz de Anatomia de uma Queda, Palma de Ouro no Festival de Cannes 2023, uma obra que subverte o clássico filme de tribunal, com roteiro dela e de seu marido, o também cineasta e roteirista Arthur Harari. Por isso não vemos quase nunca os jurados e vamos sentindo tudo estranho até que entendemos a proposta. Nós somos os jurados. Com maestria, Justine nos coloca nessa posição e parece nos dizer que hoje, nesse cenário contemporâneo, em que as redes sociais se tornaram os maiores e mais terríveis jurados, todo julgamento é efetivamente uma disputa de narrativas – sejam as da defesa, as da acusação, as da imprensa que cobre o fato; mas, principalmente, aquelas forjadas nas redes sociais, quando todo e qualquer um acusa, defende, opina, julga, absolve e, na maioria das vezes, condena.

Mas, claro, nós, o público, somos privilegiados. Diferentemente dos jurados do tribunal, temos acesso à principal narrativa em questão: a do próprio filme. Como somos testemunhas do que vai se passando – que ninguém naquele tribunal, nem os advogados, nem a juíza, a plateia, as testemunhas, os jurados, e a própria ré têm total conhecimento  somos também cúmplices do jogo proposto pela cineasta e logo nos sentimos, se não coautores, espectadores com uma enorme vantagem em relação aos personagens. Até que, finalmente, quando talvez a soberba comprometa nosso olhar e a compreensão real dos fatos, nos vemos diante da genialidade de Justine Triet como artista a nos indagar o que é verdade, o que é ficção? E, no limite, o que é (uma) narrativa.

Mas vamos, primeiro, aos fatos. Os da história contada e os da forma como são narrados.

Sandra, uma escritora alemã, e Samuel, seu marido francês e professor, vivem juntos com Daniel, o filho de 11 anos do casal, deficiente visual, em uma pequena e isolada cidade nos Alpes franceses. Quando Samuel é encontrado morto sobre a neve diante de sua casa, a polícia passa a tratar o caso como um suposto homicídio, e Sandra se torna a principal suspeita.

Está armada a trama de um dos melhores filmes de 2023. Como sintetizou o filósofo e escritor Francisco Bosco, a obra de Triet “mobiliza relações amorosas, parentais, questões de gênero, sucesso e fracasso, ressentimento, sexo, justiça, psicanálise etc. Tudo isso de modo complexo e ora explícita, ora implicitamente. Duas horas e meia de um filme conciso, em que nada sobra, nada está fora do lugar – embora, da perspectiva da história, tudo isso está suspenso, confuso, labiríntico. É um grande feito artístico”.

 

 

 

A mise en scène

Menos o tema ou a coincidência – que me parece proposital, claro – da ideia de anatomia, o que Triet encontra em comum com Otto Preminger e sua Anatomia de um Crime (Anatomy of a Murder, 1959) é exatamente a visão estética, a mise en scène, o tratamento cinematográfico forjado na exploração dos espaços como busca da expressão do que vai pela alma dos personagens. Para isso, os cenários – a casa na montanha, o tribunal etc. – formam um painel de detalhes que vão aos poucos compondo o entendimento do todo, quando este se torna ou possível, ou inevitável, ou revelado, ou mesmo não passível de ser compreendido.

Parece que Justine Triet compreendeu perfeitamente a análise do também cineasta francês François Truffaut:

“Otto Preminger é um cineasta pouco comercial, talvez porque se dedica à procura de uma verdade particularmente tênue e quase imperceptível: a dos olhares, dos gestos e das atitudes (…) Nos trabalhos deste pintor apaixonado pelo pormenor imperceptível, a magnificência do enquadramento visa impor a insignificância deliberada do desenho, e os genéricos tonitruantes de Preminger constituem uma risada conscientemente instigada por ele.”

Nesse sentido, Anatomia de uma Queda se vale da ideia de anatomia para dissecar, entender muito mais do que apenas a história a ser contada. Primeiramente, Triet se vale do cinema de Preminger para se revelar, como ele foi, uma cineasta puramente clássica: “respeito total às convenções, culto da transparência, limpidez do discurso cujo sentido nunca está dissimulado, e representação mais natural possível dos atores”. E conclui Jacques Aumont, “de todos os cineastas de Hollywood da era clássica, Preminger foi certamente aquele que melhor soube conciliar estes dois condicionalismos contraditórios: fazer sentido e não o mostrar”.

No segundo momento de sua abordagem, determinada a sua proposta de mise en scène, Triet vai inovar em seu classicismo. E aí está o seu grande feito artístico. A cineasta promove, concomitantemente, a anatomia da própria narrativa, porque seu objeto é a discussão da noção de verdade – aquela do drama encenado e, ao mesmo tempo, a sua representação em filme.  E vale para ela o que Olivier-René Villeon escreveu sobre Preminger a respeito de Anatomy of Murder, “o rigor da direção revela todas as ambiguidades de um processo, em que a verdade balança entre as demonstrações opostas do advogado e do promotor, sem por isso eleger lugar algum que torne o debate menos urgente”.

Esta urgência está presente desde o primeiro momento.

Já na abertura temos a precisão da tomada, com enquadramento e movimentos de câmera que compõem o sentido da proposta: a bola que quica na escada e é seguida pelo cão-guia de Daniel – dois personagens-chaves para a possibilidade de uma solução da trama -, é a metáfora visual, ou mesmo índice, de que a história será conduzida como um novelo que o filme vai desenrolar via construção de sua narrativa. No momento seguinte, com enquadramentos precisos de plano e contraplano (sem apelar para a montagem em forma de pingue-pongue), conhecemos a protagonista Sandra Voyter (Sandra Hüller). Ela é uma escritora famosa que concede entrevista para uma estudante de literatura. Na clássica montagem paralela, Triet insere na sequência o banho que Daniel (Milo Machado Graner), o filho, dá no seu cão-guia.

 

“O que você quer saber?” pergunta Sandra, logo no início da entrevista, à estudante. Ela quer saber o que é realidade e ficção nos escritos de Sandra Voyter, e se a escritora pensa que só podemos inventar e criar a partir da realidade. A produção literária de Sandra, por sua vez, situa-se em um gênero que pode ser chamado de autoficção. O filme brinca de uma maneira fascinante com a noção de que os escritores se valem das pessoas ao seu redor como material para suas histórias o que, inclusive, os tornam únicos. É o que filme parece nos dizer quando o casal protagonista é nomeado pelos nomes dos próprios atores, Sandra e Samuel (Samuel Theis).

Ao mesmo tempo em que somos apresentados à protagonista do filme, somos despertados para uma questão central que vai irrigar o filme: a da interpretação da história literária, fonte primeira do drama, que vai se desenrolar tendo cada um de nós como testemunha e, mesmo, cúmplice. Como observou Laelia Veron, professora de Estilística da Universidade de Orléans, no lançamento do filme na França, isso se dá principalmente quando “esta história joga em certas margens problemáticas, entre a ficção e o não-escritor; e entre ficção, representação artística e fidelidade mimética à realidade. Ainda mais quando é confrontada com outras histórias, que têm critérios próprios de coerência, validade, admissibilidade: a história jurídica, mas também a história jornalística, a história psicanalítica, a narrativa médica, a narrativa pericial etc.”.

A entrada em cena de Samuel, que não se dá pela sua presença física, vai interromper a conversa entre escritora e estudante. Ele se insere como uma provocação, apenas por meio do barulho intenso e em alto volume de uma canção – o rap P.I.M.P., de 50 Cent, em uma versão instrumental do grupo Bacao Rhythm & Steel Band. Triet traz o personagem do marido por meio de uma canção cuja letra (P.I.M.P. significa cafetão) exalta a misoginia e enfatiza como o cafetão tem mulheres sob seu controle. Há ainda no subtexto mais um elemento, Sandra Voyte é alemã e o grupo musical que toca essa versão também.

Diante da impossibilidade de continuar a entrevista, com o ensurdecedor volume da canção ouvida por Samuel, Sandra a suspende. Nesse momento, o próprio público fica aliviado, porque Triet também nos provoca com o incômodo desse som quase insuportável. Um efeito que prenuncia também o intenso uso de recursos sonoros (barulhos, ruídos, áudios e música diagética) que funcionam como comentários da própria narrativa em vários momentos do filme. O filho Daniel quase martelando ao piano os acordes iniciais do Prelúdio do espanhol Albeniz (batizado de Astúrias-Leyenda); o melancólico Prelúdio nº 4 de Chopin, tocado a quatro mãos por mãe e filho.

Na sequência somos apresentados à trama (e ao drama) principal. A entrevistadora vai embora, e na saída cruza com o filho Daniel que leva o cachorro Snoop para um longo passeio. Quando retorna, ele encontra o pai na neve, com um ferimento sangrento na cabeça. Daniel se desespera e grita por Sandra, que aparece no alto do chalé, desce a escada e chama uma ambulância. Samuel está morto.

Ele caiu do sótão onde trabalhava? Ele pulou? Ou ele foi empurrado?

Acidente, suicídio ou assassinato?

A partir dessas questões aparentemente simples, Justine Trier tece uma narrativa composta de outras narrativas na tentativa de nos guiar a fazer uma escolha. Se a resposta que daremos ao final do filme é satisfatória não depende dela, nem do próprio filme. Depende de cada um de nós e de nossa capacidade de compreensão. Por isso nos tornamos, passo a passo, jurados privilegiados e isso fica claro na sequência clímax dessa narrativa. É o embate entre Sandra e Samuel, quando ele reclama de não ter tempo pra si e suas ambições.

A discussão acalorada, que inclusive leva à agressão física, chega ao conhecimento do júri e de todos os presentes no tribunal por meio do áudio da gravação da briga feita por Samuel e encontrada em um pen drive, entre seus pertences. Enquanto o júri apenas ouve o áudio, nós assistimos também à encenação da briga. Temos acesso a uma gama maior de informações – como expressões orais e corporais; pontuações pelo olhar; reações físicas e, claro, o comportamento dos atores naquele cenário. Estamos aptos a dar, no final, o nosso veredito.

Onde está a verdade? Com Sandra, que a princípio aparenta frieza, mas com o desenrolar do julgamento se mostra desesperada; com a defesa que tece uma linha de questionamento das possíveis provas, ressaltando em cada uma delas as incongruências do relato; com a acusação que procura criar sua narrativa de forma quase literária, valendo-se, inclusive, de aparentes similaridades entre o fato criminoso e as próprias tramas criadas por Sandra em seus livros; ou com o filho Daniel que não tem a visão, mas a audição acurada e a sensibilidade para perceber o que acontece naquela família?

Seja qual for o nosso veredito, o que mais sentimos ao final do filme é que podemos escolher a narrativa que melhor responde às nossas próprias dúvidas. Nessa polifonia podemos ter uma única certeza, aquela legada por Tolstói,

“todas as famílias felizes se parecem, as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira”.

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Jeffis Carvalho

É jornalista, pesquisador e ensaísta de cinema; e consultor de comunicação.

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