Palermo, outubro de 1963. Um grupo de poetas, prosadores, críticos e artistas se reúne no sul da Itália para repensar arte e literatura, para dar voz à Neovanguarda que já alguns anos antes havia começado a se manifestar nos ambientes da revista Il Verri e com a publicação da antologia I Novissimi (1961).
Buscando o encontro e o confronto, esses jovens se propunham a desafiar as estruturas hierárquicas de um sistema cultural antiquado, em que o peso da tradição não deixava espaço para novas tendências; queriam romper com a continuidade do conservadorismo literário, artístico e intelectual, olhando para a linguagem da arte como a maneira de operar essas mudanças. Nesse clima nasce o Grupo 63, movimento heterogêneo e sem objetivos definidos — grupo que, como diria Edoardo Sanguineti, um de seus fundadores, já nasceu «corroído» —, caracterizado por individualidades marcadas (por vezes inconciliáveis), mas também animado por uma intenção de busca coletiva.
Desse grupo se aproximou Amelia Rosselli (1930-1996), poeta e tradutora de origem ítalo-inglesa, uma das vozes mais contundentes da poesia italiana do século XX. Nascida em Paris em condição de refugiada — o pai, Carlo Rosselli, figura importante para o antifascismo italiano, encontrava-se exilado na França com o irmão Nello —, deparou-se, desde seus primeiros anos de vida, com cenários de exílio e morte: seu pai foi assassinado quando ela era ainda criança, e a esse evento seguiram-se outros de fuga e desenraizamento.
A educação de Rosselli foi múltipla e versátil: as três línguas de sua infância e juventude — o italiano paterno, assumido mais tarde como a língua da poesia; o inglês da mãe; o francês de sua infância — lhe permitiam mergulhar nas diversas tradições literárias, aproximando-se também de importantes figuras da vanguarda. A investigação poética de Rosselli se caracterizou desde o início por uma extraordinária habilidade de linguagem e uma profunda intuição musical, cultivada no estudo da etnomusicologia e da composição.
Em 1963, a poeta compunha versos já há uma década, tendo redigido os poemas de Variazioni belliche [Variações bélicas], publicado no ano seguinte, o ensaio Spazi metrici [Espaços métricos] (1962), e o poema longo La libellula [A libélula], composto em 1958 e impresso só mais tarde. Nessa primeira fase poética, Rosselli alterna as três línguas de origem: o volume Primi Scritti [Primeiros Escritos] (1952-1963), publicado em 1980, reúne textos em inglês, francês e italiano, concluindo-se com uma série chamada Palermo ’63, em que se apresentam poemas redigidos em ocasião do primeiro encontro do Grupo 63, dedicados a alguns de seus integrantes.
Amelia Rosselli se mostrou sempre esquiva em relação a grupos e tendências; participou de algumas reuniões do Grupo 63, não chegando, porém, a identificar-se com os propósitos dos colegas. Constituindo uma voz poética isolada, a poeta se mantém fiel não às tendências de vanguarda mas à própria percepção: os poemas de Palermo ’63, definidos pela mesma autora um «scherzo letterario»,[1] constituem um exemplo do uso sagaz e irônico da língua, e nos revelam uma Rosselli divertida e perceptiva, paródica e provocadora, que não poupa versos de ironia a seus colegas, e nem a si mesma.
[1] Amelia Rosselli usa a locução «scherzo letterario» [brincadeira literária] em uma carta para Armando Marchi, escrita em 10 de agosto de 1987.
poesia dedicata a Mich Perriera: «Geografia del Male» romanzo
Io quando amavo desideravo non te ma le più dolci ironie d’una
vera semenza. Ecco è chiuso il cerchio separato da il tuo
volenterosa correvo a cercarti. Veramente non sapevo
chi ti voleva. Per esempio giocare dolcemente piangendo
sudando. Io non volevo lo tono screziato morire è
per me lo tono screziato.
Perché muori?
poema dedicado a Mich Perriera:[2] «Geografia do Mal» romance
Eu quando amava desejava não a ti mas as mais doces ironias d’uma
verdadeira semente. Eis que se fechou o círculo separado do teu
de boa vontade corria a buscar-te. Realmente não sabia
quem te queria. Por exemplo brincar docemente chorando
suando. Eu não queria aquelo tom matizado morrer é
para mim aquelo tom matizado.
Por que morres?
[2] Michele Perriera (1937-2010) foi escritor de romances e contos, além de dramaturgo; integrou o Grupo 63 e a Scuola di Palermo, ao lado de Gaetano Testa e Roberto di Marco. Em Palermo fundou a escola de teatro Teatès, atuando também como diretor teatral.
poesia dedicata a Filippini Enrico
Se l’alba procedesse con un tiro più forte io capitolerei
dinnanzi a così dura sorte. Ma la riva sommersa
degli intercambiabili problemi premette
dosature convenute con grazia e la risposta, evangelo
degli iscritti, è semovente. Pretendere salpare
per scivolami rivoltosi combina una drammatica
convenienza, la remora degli istinti è un
conveniente assalto.
poema dedicado a Filippini Enrico[3]
Se a aurora procedesse com um golpe mais forte eu me renderia
diante de tão dura sorte. Mas a beira submersa
dos intercambiáveis problemas apertou
dosagens outorgadas com graça e a resposta, evangelho
dos inscritos, é semovente. Exigir zarpar
por deslizagens revoltosas combina uma dramática
conveniência, o hesitar dos instintos é um
conveniente assalto.
[3] Enrico Filippini (1934-1988) foi tradutor — verteu para o italiano textos de pensadores e prosadores alemães —, jornalista e escritor; aderiu ao Grupo 63.
Chiesa
Jesù che sei nel mio cuore, perdona i miei pentimenti disastri
ovvero clementi ti rubano al cuore il semente. Jesù
che oscuro fermenta permetti ch’io preghi per te
che l’ora infinita sia vinta. Inventa parole e
perdoni io t’amo Gesùnellemembra.
Rovinainfinitasismuove
Romanzochiarificatoreunisce
Jesùnellemembratotali
Combinalarimanuovaiopregoilluminare
iquattromondi
Preghieradisperatarimuove
passionedisperataangoscia
Infernoimmobilesintetizza
Cantonidisintegratidella
miavita.
Igreja
Jesus que estás no meu peito, perdoa os meus arrependimentos desastres
ou seja clementes te roubam do peito o semente. Jesus
que obscuro fermenta permite que eu reze para ti
que se vença a hora infinita. Inventa palavras e
perdões eu te amo Jesusnosmembros.
Ruínainfinitasemove
Romanceclarificadorreúne
Jesusnosmembrostotais
Combinaarimanovafavoriluminar
osquatromundos
Precedesesperadaretira
paixãodesesperadaangústia
Infernoimóvelsintetiza
Cantosdesintegradosda
minhavida.
poesia dedicata a Gozzi
Come un sol uomo mi muovo impertinente
niente suspense nel giallo. Violento
cretino nel muoversi. Assassinio figlia di Grim
si violenta da non si sa chi che è da scoprire carino
Sistema in crisi perdita verginità trovare assassinatore
casualissimo. Nadia la figlia si muove liberamente
dopo le perdite casuali o no. Costruzioni allegoriche
scattano politiche. Moto insurrezionale sperde il
Dio traumaturgo. Poliziotto sempre Americano.
Grigioni i testi, la testa che si taglia, addirittura
manoscritta. Poliziotto scoglie dramma.
poema dedicado a Gozzi[4]
Como um homem só me movo impertinente
sem suspense no livro policial. Violento
cretino no mover-se. Assassinato filha de Grim
violada por não se sabe quem que há de descobrir-se bonito
Sistema em crise perda virgindade encontrar assassino
casualíssimo. Nadia a filha se move livremente
depois das perdas casuais ou não. Construções alegóricas
disparam-se políticas. Motim insurrecional dispersa o
Deus traumaturgo. Policial sempre Americano.
Grisões os textos, a testa que se corta, até
manuscrita. Policial solucciona drama.
[4] Alberto Gozzi (1934) foi dramaturgo, diretor de teatro, escritor e docente; dedicou-se também à rádio e à televisão.
A me stessa
Volontà di potenza è la forza del mondo se il cielo si rattrista
quando il mio cielo è blu chiaro. Volontà del sesso mio problema
rovina nei tempi negli scavi sacrificio romantico della bellezza.
Vedere l’industria che si smuove imponendosi magra l’esperienza
tragica la verità. Il cuore corre con una spedita grafìa, io ti riguardo
mio cuore.
Morirò nel vecchio stile preoccupandomi ancora per l’avvenire
Parlare nell’ombra d’un cipresso
A mim mesma
Vontade de potência é a força do mundo se o céu se entristece
quando o meu céu é azul claro. Vontade do sexo meu problema
ruína nos tempos nos escombros sacrifício romântico da beleza.
Ver a indústria que se move impondo-se magra a experiência
trágica a verdade. O coração corre com uma grafia rápida, eu te remiro
meu coração.
Morrerei no velho estilo ainda preocupando-me pelo porvir
Falar à sombra de um cipreste
poesia dedicata a Spatola
Il mare ha delle punte bianche ch’io non conosco e il tempo, che bravo
si dimena bravo nelle mie braccia, corrompo docilmente –
e sottile si lamenta per i dolori al ginocchio a me toccàti.
Senza livore io ti ricordo un immenso giorno di gioia
ma tu dimentichi la vera sapienza. Se la notte è una
veraconda scematura io rivorrei giocare con le belle
dolci signore che t’insegnavano che il dare o il vero, non
è vero.
Sentendo morire la dolce tirannia io ti richiamo
sirena volenterosa – ma il viso disfatto di un chiaro prevedere
altre colpe e docili obbedienze mi promuove cretine
speranze.
Gravi disgrazie sollecitano.
Il vero è una morte intera.
poema dedicado a Spatola[5]
O mar tem pontas brancas que eu não conheço e o tempo, que audaz
se debate audaz nos meus braços, corrompo docilmente –
e sutil reclama das dores no joelho a mim destinadas.
Sem rancor eu te recordo um imenso dia de deleite
ma tu te esqueces do verdadeiro saber. Se a noite é um
diminuir purídico eu gostaria de voltar a brincar com as belas
doces senhoras que te ensinavam que o dar ou o verdadeiro, não
é verdadeiro.
Sentindo morrer a doce tirania volto a te chamar
sereia zelosa – mas o rosto desfeito de um claro prever
outras culpas e dóceis obediências promove em mim cretinas
esperanças.
Graves desgraças solicitam.
O verdadeiro é uma morte inteira.
[5] Adriano Spatola (1941-1988) foi poeta, prosador, editor, tradutor e ensaísta; teve um papel fundamental dentro do Grupo 63.
poesia dedicata a Guglielmi: «La Coscienza Infelice» poema lungo
Proclamazione
Livellamento dialettico due cose integrate
stessa impressione Gaddismo per
Leonetti Il Modo inserisce Balletto. Più
patisce dissociare pubblico privato.
La registrazione rapporto amore odio
Guglielmi-Sanguineti. Due tre 4
ordini fra gli altri errato ordine
fisiologico dati sensibile carattere ideo-
logico. Perché sono io Pasolini c’è
contrasto ordine integrazione contrapposizione
sono crepuscolare gusto impegno
discorsi vaghi. Carattere fisiologico
gestualizzare poesia tua oh Sangue.
Tipo cultura scoperta decisamente
Pasol-côte d’azur. Politico
soggettivo intersoggettivo connettivo
Guglielmi. Stato rapporto soggetti.
Musa Sangue è l’ira.
Morte Ermetismo sofferto
poema dedicado a Guglielmi:[6] «A Consciência Infeliz» poema longo
Proclamação
Nivelamento dialético duas coisas integradas
mesma impressão Gaddismo para
Leonetti O Modo insere Balé. Mais
sofre desassociar público privado.
Registrar a relação amor ódio
Guglielmi-Sanguineti. Dois três 4
ordens entre as outras errada ordem
fisiológica dados sensível caráter ideo-
lógico. Porque sou eu Pasolini há
contraste ordem integração contraposição
sou crepuscolar gosto empenho
discursos vagos. Caráter fisiológico
gestualizar poesia tua ó Sangue.
Tipo cultura descoberta decididamente
Pasol-côte d’azur. Político
subjetivo intersubjetivo conectivo
Guglielmi. Estado relação sujeitos.
Musa Sangue é a ira.
Morte Hermetismo sofrido
[6] Angelo Guglielmi (1929) foi uma das figuras mais importantes do Grupo 63. Além da crítica, Guglielmi se destacou por sua atividade na televisão italiana — foi diretor de Raitre entre 1987 e 1994 — e em outros veículos culturais.
Poema dedicato a Di Marco
Rapporto non si capisce bene con Giuseppe. Nella stessa stanza e
basta si sa massime di Rado Intellettuale Comunista che
Fugge di Paese in Paese. Rapporto di mattina da parte
ipnegiogica. Per i fatti Loro Giuseppe Maria
fugo. Maria Rosa Locanda Malfamata – vedremo. Fughe.
Le Fughe Musicali + Strutture dissidio mio
Non Credere nel Romanzetto – non Seguo. Prodotto
storico non si vede ma mi pongo problema creare
nuovo romanzo strutture colte problema
Sanguineti. Flusso, credere, continuamente
cammina, Ma Maria Rosa ipnagogica intuisce
benissimo la prima mattina incontro. Percezione
o Immaginazione-premessa immaginare interpretare
nella dimensione posta in Giugno.
Povera matta i tuoi misteri. Caso
di morte otturazioni. Montare cocchio fuggire Tutù
cles. Moralità privata se freddezza agitatissima il
dolote continua. Rigidezza in più punti.
Come dissi il giovane che m’hai portato.
Vanità virtuosa istinto di fuga.
Poema dedicado a Di Marco[7]
Relação não se entende bem com Giuseppe. No mesmo quarto e
só se sabe máximas Raramente Intelectual Comunista que
Foge de País em País. Relação de manhã da parte
hipnegiógica. Por Sua conta José Maria
fugo. Maria Rosa Taberna Mal-afamada – vamos ver. Fugas.
As Fugas Musicais + Estruturas dissídio meu
Não acredite no Romancinho – não Acompanho. Produto
histórico não se vê mas me ponho problema criar
novo romance estruturas cultas problema
Sanguineti. Fluxo, crer, continuamente
caminha, Mas Maria Rosa hipnagógica intui
muito bem a primeira manhã encontro. Percepção
ou Imaginação-premissa imaginar interpretar
na dimensão posta em Junho.
Pobre doida os teus mistérios. Caso
de morte obturações. Montar cocheira fugir Tutu
cles. Moralidade privada se frieza agitadíssima a
dol continua. Rigidez em diversos pontos.
Como eu disse o jovem que você me trouxe.
Vaidade virtuosa instinto de fuga.
[7] Roberto di Marco (1937-2013) foi prosador, poeta, ensaísta, crítico e editor; participou da Scuola di Palermo.
Valentina Cantori
é pesquisadora e tradutora. Formada em Literatura Italiana e Linguística pela Universidade de Roma La Sapienza, é doutora em Filologia e Linguística Românica pela Universidade de Macerata e pela Universidade Hebraica de Jerusalém; concluiu na USP um projeto de pós-doutorado sobre literatura italiana do século XVII e judaísmo. Em 2020, publicou a tradução de Ancestral, livro de poemas de Goliarda Sapienza (Âyiné); traduz literatura italiana para o português e poetas da América Latina para o italiano; ministra cursos sobre literatura e tradução.