A evanescência das brumas abrindo-se lentamente num píer entre o mar duma baía reentrante em encontro com um estuário ferruginoso. Assim começa “A primeira noite de tranquilidade”, obra-prima de Valério Zurlini,  o filme que mais remete ‘a Santos mítica’. Toda real beleza é trágica, diz-nos Dostoiévski nos “Karamazov”, e essa fita revela toda dramaticidade de um personagem que chega a um desses portos que são como cidades-estado: Tânger, Xangai, Trieste, esses promontórios que trazem do Oceano todo abissal paradoxo da existência: melancolia na superfície sobre universos em ebulição liquefeita. Só a proximidade do Oceano-Mar poderia dar toda pungência ao personagem de Alain Delon nesse que é considerado dos mais brilhantes manifestos existencialistas da sétima-arte. Enquanto espreito pequenas embarcações, iates e veleiros solitários, grandes navios ao largo na Ponta da Praia que é largada e chegada de meus sonho, porto e término, o raio de luz não lamenta que seu lume ceda ‘a sombra de seu instante’. Chegando como forasteiro das esferas, Delon irrompe como os anjos sem asas de Michelangelo, desterrado e enreda-se em tramas amorosas dignas num homem em “disponência” ao seu destino, ao “si-mesmo” de sua facticidade.  Das atmosferas, as baías são as mais simbólicas dum conforto uterino: quando as vagas confortam o ser de estar protegido diante do infindo. “Sopra o vento…Convém tentar viver! Às ondas vamos, refazendo a vida! O poema “Cemitério Marinho”, de Paul Valéry, é convocatório como a luta e lida no epigrama de Goethe encerrando todas as nossas possibilidades até o farol e o abismo: “Por que a morte é a primeira noite de tranqüilidade ? Porque fundamentalmente se dorme sem sonhos “. Esse aforisma faz a ponte entre o mestre das “Afinidades Eletivas” até Heidegger que inspirou Zurlini: as utopias sociais, as ilusões terrenas, tudo, todas se dissolvem na visão intermitente que tenho do Homem diante do horizonte marinho. Intelecção de um cinéfilo obsessivo e emotividade dum escritor permeado do “sentimento atlântico do mundo”: eu sinto estar dentro dos filmes que forjam minha imagética, a plasticidade de minha emocionalidade. Quando só no vértice/ vórtice das dobras insulares desse feixe de terra que compõe uma cidade, pareço esperar o professor de literatura Daniele Dominici que torna-se contrapartida de minhas angústias feito corais cercando meu espírito.

Esteta, Zurlini deu a Delon estatura dum Apolo decaído, niilista, um estrangeiro “camusiano”: quando se gosta demais de Arte sempre fica o talvez e talvez ainda seja esse o cenário mais aproximado do que suponho representação cinematográfica da Vida. Quem aprecia e sente em demasiado sempre deixa margem à foz de novos rios afluindo em sensibilidade. O professor Dominici ( Delon), como propõe Heidegger, vive a possibilidade, seus riscos mais do que um presente desprovido da transcendência original. Como o mar, sinto cumplicidade com essa coincidência entre “acontecer” e “começar”: o fascínio é que como as ondas, não “sou”, “aconteço!” Para isso, liberdade deve combinar com extrema amplidão diante do Nada: iluminar-se no que se angustia. O espectador de cinema quando envolvido pela trama e ambiência torna-se refém psicológico de construções que vão além da montagem: uma emotividade que vem do espanto ou da ternura: ela, a ternura é como o cérebro do espírito, nos cativa pelo espelhar. A empatia ou identificação é um espelho no qual cada um reflete sua imagem. Para todo sempre, “A primeira noite de tranqüilidade” será a película que me remete a Santos que adormece sob um poente violáceo e o homem só pelo píer provando “instransferibilidade” de nossos sentimentos: ninguém sente como outro mesmo tentado compartir o senso de navegar a mesma jornada.

Alan Delon é um dos últimos ícones da estatura estelar de Liz Taylor, Brigitte Bardot, Jeanne Moreau que fizeram a beleza aprender a ser talentosa e não paralisante. Só Delon poderia traçar a tragicidade aliada à ‘Beleza que o Mar encarna de modo assombroso’: existe sempre uma suprema ambigüidade na Beleza, placas tectônicas sob uma calmaria de placidez convidativa. “La primma notte de quiete”, o título em italiano remete a conceitos que me são caríssimos com esse tom santista: Destino, desejo, irreversibilidade. Existe algo de mágico na beleza masculina: só a coragem dum poeta para proclamá-lo. Algo só masculino que se destaca.  O personagem de Delon chega a um porto como quem divisa sua fortuna, fado, ventura e fatídico desfecho sem mais ancoragens …. O que em mim sente, pensa: assim como percepto líquido não me saem das retinas seduzidas esse quadro rodado com esmero de um De Chirico por Valério Zurlini …. é Santos onde nasci que reinvento: como em meu poema que diz do mântrico círculo das águas: “chuva no mar é desejo”.

Quem sabe seja nascer apenas um embarcadouro e o futuro infindável travessia entre longe e o nunca: um alguém que sempre ancora novamente … ou só caminha vindo de onde.

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Flávio Viegas Amoreira

Escritor, poeta. Colunista da seção “Terra em Transes” da Revista Piparote.

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