há dias em que os olhos acordam se as mãos

Uma menina olhou para os vícios trazidos pela história dos homens.
Havia fogo nas bocas que traduziam as músicas,
era como se fossem batuques conduzidos pelo corpo
humano.
A menina na sua solidão desenhava outras histerias
do mundo. Seria se calhar a única forma de ajustar as
coisas. Não pensá-las no sentido imediato, comê-las
pela carne interior. Antes que as feridas apareçam.
Nada se podia dizer nada acerca dos antigos, nem
acerca da tradição, pois ninguém sabia onde se guardavam as dores e as alegrias.
Então a menina procurou nas pedras. Mas aí acabavam as indagações

permanentes do corpo: da alma do corpo, da loucura
e da síntese.
Às vezes Deus desespera, tirando a parte trémula
dos dedos das mulheres:
— Tanto no mar, quanto na terra, se morre.
Por toda parte há morte em formas baixas. Fórmulas difíceis. Estruturas altas debaixo do sol.

Outra menina na janela estremece com o coração.
Mostra como ele pensa. Há dardos improváveis nas
emoções clandestinas.
— É um monstro a felicidade quando se toca na
margem.

Dias em que os olhos acordam sem as mãos. Com
as meninas abeiradas ao longo dos rios. As faces
com as suas tenebrosas cores ressuscitam para dançar vagamente na toada violenta da esperança: as
crianças ainda por nascer, o céu que teima em não se
levantar (?) novamente. Lá vai a vida e suas alusões.
Ilusões vespertinas deitadas no talento do movimento.
Há dardos improváveis nas emoções clandestinas.
— O coração mostra como ele pensa: magumba
ou peixe prata…
Estes nomes deixam de insistir com o mundo ao
avesso. A menina sentada no ramo, senta-se nas pálpebras dos homens e pergunta por quê os dias não
param de ser dias. Por quê os dias trazem dentro de
si as noites.
A menina acende as grossas estrelas de Maio,
brinca com o frio no gelo impenetrável. Renasce
sempre que ouve falar de guerras, rápidas mortes,
tristes vidas. Poeira sobre o hemisfério. O sol que
grita nas manhãs à espera da lua como se nunca isso tivesse sucedido. Paixão sem paixões. Subversão.
Inversão das mais terríveis.
“I want to tell you about love and loneliness”, dois
contos sobre a criação das espadas e outro sobre o
homem: ou os espelhos aguçados. As meninas sempre sentadas ao redor do chão, quadrado. Olham,
dobram o relance. Até que perdem a visão. O que
pode fazer uma menina trancada aos quadrados?
— Espero pelos candelabros da vizinhança… —
sussurra a menina na madrugada branca. As luzes
eram tão nossas que nos escapavam, pensava a
menina.
As luzes dobradas, encostadas à crosta, parecem
doutro mundo — continuava ela atrás do caminho
que acordara as cidades terrestres: uma em cima e
outra em baixo. Em experimento. Ei-la, a menina,
em estado de regressos.
— Enquanto a palavra tiver sido acabada não restará nenhum grito para ela.
Dizem que a menina é o verso perdido de deus.
Nas suas formas irrefutáveis, séculos e aparições.
As condenações secretas.
Então, por isso se inventou o mundo e o universo?
Por isso os homens nasceram tortos, desdentados e
barrigudos, com uma visão segregadora? Por isso os
homens não sabem ver.
Não sabem ter pena do que está sob suas faces.
Falta-lhes jeito.
A menina surgiu dentro dos homens. — ouvi
dizer.
A sua margem corrupta aviva-se dentro dos
homens. Continuadamente descobertos nas grandes
matérias.
Quando alguém diz que Deus é concordância, diz
também que há uma menina a flutuar. Que há uma
força incontrolável na servidão.
— O perigo de ser embebedada.
O espaço é enorme.
A menina nada tem a ver com a objetivação
— acósmica, e ressurge com o tempo enlaçado ao
cérebro. Em vertigens desafiadoras das estações
sedentárias. Crê-se nisso da forma mais infundada e
pura. A menina tem esse poder de trazer esperança.
De fazer surgir a água e águia.
A menina é a febre do pulmão desalfomadado,
com as mesmas fórmulas das palmas.
Há dias em que os dedos acordam sem as mãos.
Neles, as meninas acendem as visões templárias.

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Hirondina Joshua

Poeta e escritora moçambicana. Membro da Associação dos Escritores Moçambicanos. Escreveu: "os ângulos da casa", Poesia, sob chancela da Fundação Fernando Leite Couto (Moçambique); "como levita à sombra dos altares" (2021), livro de contos, edições húmus colecção 12catorze (Portugal).

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