Quem teve o privilégio de assistir a uma das apresentações do Récital dramatique en musique “Clarice: Ballade au-dessus de l’abîme” no teatro L’Accord Parfait, em Paris, sob a direção artística de Antonio Interlandi e adaptação de Catarina Brandão, pôde experienciar uma verdadeira imersão no universo de vida e obra de Clarice Lispector pela voz e interpretação da nossa magistral Atriz Maria Fernanda Cândido. Embalada pelas peças tocadas pela pianista Sonia Rubinsky numa virtuosidade única, que se intercalavam entre um conto e outro, ou fragmentos de textos, Maria Fernanda nos trazia, num francês que fluía delicado e envolvente, palavras e frases que nos remetiam a uma diversidade de emoções e sensações como se realmente flutuássemos sobre um abismo dos sentidos. A elegância suave e plena de Maria Fernanda e suas letras, que iam compondo uma verdadeira sonata textual, preenchiam o espaço de uma sonoridade e beleza únicas que se alternavam às notas corporificadas pela excelência de Sonia, que parecia dançar os dedos ao piano. Ambas, atriz e pianista nos envolviam de tal modo que mais pareciam ligaduras de frases e que fazíamos parte daquela partitura, assim como na obra de Clarice, quando somos pegos em desaviso por contos como Amor, do livro “Laços de família” ou “Restos do Carnaval”, de “Felicidade Clandestina”, ambos interpretados no palco por Maria Fernanda Cândido e que me fizeram chorar. Naquele momento, eu me senti envergonhada: como posso ser assim, uma pessoa tão emocionada? Para que tanto? Mas, como disse a própria Lispector em sua entrevista para Affonso Romano de Santanna no MIS, em 1976, “eu era tão livre, não sei nem explicar. E excessivamente sensível, por qualquer coisa eu chorava. E ria, ria como uma doida”. Maria Fernanda também derramou uma lágrima delicada no palco, e vimos seus olhos marejados, após o primeiro trecho interpretado, quando Clarice falava sobre ter nascido para salvar sua mãe e se sentir culpada por não ter cumprido sua missão. Na sequência, entra Sonia com a Sonata No2 op.36, de Rachmaninoff. Foi um momento emocionante e intenso, já dando o tom que acompanharia aquela noite mágica. Concebida e adaptada pela dramaturga Catarina Brandão, Ballade au-dessus de l’abîme me impactou de tal forma, que quando sugeri ao nosso querido editor Luis Marcio Silva um artigo a respeito, ele prontamente acatou e sugeriu ainda que fizéssemos uma entrevista com a equipe do Recital. E, para a nossa alegria, a equipe nos concedeu com toda a generosidade as respostas para as perguntas que o próprio Luis Marcio nos enviou e que compõem este artigo tão especial para nós. Clarice, que costumava dizer que “fabulava desde os sete anos de idade”, teve uma única peça dramática publicada: A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, em 1964, que foi escrita enquanto estava grávida do primeiro filho. Lispector, em cartas a amigos como Fernando Sabino e João Cabral de Melo Neto, dizia estar se divertindo com aquela escrita do texto teatral. E assim, uma obra também vai se ligando a outra e, embora o Recital já não esteja mais em cartaz, podemos também assistir ao filme A paixão segundo GH, de Luiz Fernando Carvalho (2020), com Maria Fernanda Candido protagonizando mais uma belíssima adaptação da obra de Clarice Lispector, compondo a cinematografia brasileira e adicionando ao arcabouço de homenagens a uma autora atemporal que faz parte da história de nosso país.
Juliana Schroden
Como a abordagem experimental e a subjetividade
características da prosa de Clarice Lispector foram incorporadas no recital?
Desde a publicação de seu primeiro romance, Clarice
desconcertou os leitores com sua forma inovadora de escrever, incorporando
elementos poéticos em uma prosa intimista e visceral. Nesse sentido, sua obra
podia ser considerada “experimental”, já que destoava completamente da
literatura publicada no Brasil nos anos de 1940. O experimentalismo e a
subjetividade estão no próprio texto – e o texto utilizado no espetáculo é todo
original da autora, retirado de diversas obras -, então não foi necessário
propriamente incorporá-los. O interessante é que, no momento da leitura, essa
subjetividade é potencializada e temos a impressão de estarmos conversando com
a própria Clarice na sala de sua casa. Nesse diálogo, a pianista atua como
interlocutora e também modula o discurso por meio da música. A ideia do
espetáculo, desde o início, era transformar algo que costuma ser individual – a
experiência do leitor – em algo compartilhado. Nesse sentido, a oralidade é um
fator central, pois ressalta o caráter poético e lírico da escrita de Clarice.
A leitura de um trecho em português do conto “A Repartição dos Pães” ilustra,
de certa forma, esse desejo de partilha.
A condição de estrangeira de Clarice e o universo feminino
provavelmente afetaram na construção do texto para o recital. Como a
experiência cultural da escritora afeta duas grandes artistas que estão no
palco estrangeiro?
Na verdade, Clarice nunca se considerou estrangeira. Em um
dos trechos lidos no espetáculo, ela conta que chegou ao Brasil ainda bebê e
que todas as suas referências culturais e linguísticas estavam no Brasil.
Ainda que se considerasse plenamente brasileira, fica claro em sua obra que há
um passado familiar traumático, uma trajetória de exílio que a afeta de várias
formas.
Tanto Maria Fernanda quanto Sônia Rubinsky são brasileiras
expatriadas na França, e isso certamente tem seu peso no momento de subir ao
palco interpretando um texto em outro idioma para um público estrangeiro. O
estrangeirismo de Clarice, no entanto, era de natureza mais profunda e
existencial, um estrangeirismo em relação ao mundo. Ela tinha um universo
interno extremamente rico e único que, ao mesmo tempo em que produzia uma
literatura brilhante e original, a fazia sentir-se incomunicável, e ela
alcançou a proeza de falar dessa incomunicabilidade.
A influência da música é recorrente nas obras de Clarice,
seja nas Cartas a Hemengardo, seja uma Edith Piaf no rádio de um personagem
enquanto se locomove de trem. Qual foi a ideia ao reunir estes três gênios na
programação do recital: Sergei Rachmaninoff; Alberto Nepomuceno e Villa-Lobos?
(Resposta de Catarina Brandão)
Embora a escrita de Clarice não tenha tantas referências
musicais explícitas, ela pode ser considerada musical no sentido de que, mesmo
em língua estrangeira, essa escrita tem um ritmo próprio, às vezes animado e
lírico, às vezes lento e filosófico. O repertório musical dialoga o tempo todo
com o texto. Isso fica explícito, por exemplo, no conto “Restos do Carnaval”,
pontuado pelo “Carnaval das Crianças”, de Villa-Lobos. Em outros momentos, a
música funciona quase como uma memória da narradora.
(Resposta de Sônia Rubinsky)
A música na obra de Clarice Lispector é fundamental, não só
pelas inúmeras alusões a certo repertório, como também pelo fato dela ter
estudado piano. Mais que isto, sua prosa tem um ritmo muito
particular, que habita, na verdade, entre prosa e poesia. Esta maneira de
utilizar a língua portuguesa faz com que a obra de Clarice seja extremamente
pessoal. Estes aspectos intrínsecos de sua obra fazem com que a alternância
entre texto e música se casam perfeitamente.
O uso da Sonata nr. 2 de Rachmaninoff foi uma escolha de referência ao passado
europeu de Clarice, e à natureza profundamente dramática e profunda desta obra
para piano. Ela ocorre no começo do espetáculo onde o drama natalino de
Clarice é revelado: ela veio ao mundo para curar sua mãe:
“Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e
tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que
simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe”.
A Valsa de Alberto Nepomuceno é uma obra lenta e
melancólica. Como Nepomuceno nasceu no Nordeste assim como Clarice
também viveu no Nordeste, o uso deste autor também tem a referência biográfica
e musical como a Sonata de Rachmaninoff com relação a Clarice.
Villa-Lobos, o compositor de maior âmbito nacional, se
encaixa perfeitamente neste espetáculo. Aqui estão alguns exemplos –
como pano de fundo ao Carnaval e o conto Restos do Carnaval, ou Festa no Sertão
(terceira obra do Ciclo Brasileiro) e o conto A Repartição dos Pães – único
texto de nosso espetáculo no qual Maria Fernanda fala em
português, as palavras sendo usadas como contraponto com a música de
Villa – o que gera um momento de abundância e êxtase!
O conceito de abismo pode ser uma metáfora para fronteira, quando a realidade é
um delicado abismo da desordem, escreve a narradora de A legião estrangeira. Mas
abismo pode ser também um mergulho nas profundezas. Qual é a Clarice que paira
sobre o abismo no recital?
O título do espetáculo foi inspirado no poema que Drummond de Andrade escreveu após a morte da escritora, chamado “Visão de Clarice Lispector”. Em um dos versos, Drummond diz:
“Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.”
No processo de montagem dos textos e da música, esteve
sempre presente a ideia de abismo, não necessariamente como caos ou como
profundeza, mas como um espaço misterioso, insondável.
A Clarice que paira sobre o abismo nesse recital é aquela
que escreve para se salvar, aquela que, ao se revelar, aprofunda ainda mais o
mistério em torno de si, aquela que, mesmo sem ser plenamente compreendida,
consegue ser profundamente transformadora.
Juliana Schroden
É atriz e escritora, e estudiosa das relações entre cinema e literatura. Nascida em Uberaba, Minas Gerais. É Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia e realizou estágio doutoral na Université Sorbonne Nouvelle-Paris-3.
Luis Marcio Silva
Formado pela UNESP. É escritor, tradutor e editor da Revista Piparote. Autor da dramaturgia "Dona Maria I - A louca de Portugal"