Godard foi uma pedra no meio do caminho do cinema, disse Glauber Rocha, parodiando nosso Drummond. O cineasta dos sentidos. Que, assim, como em nosso Glauber, se dão pelas cores, texturas, sons e frases soltas, como o espírito, às vezes, (ou, quase nunca) sem intenção. A repetição das palavras como um instrumento de introjeção desses sentidos, um deglutir de ideias. Godard também propõe o estático em torno do que pulsa. A plasticidade se torna palpável ao espectador/receptáculo. Inquieto aos ruídos, dessas pulsações de vida e de morte. Seja o som de uma árvore ao vento, uma fumaça de cigarro, um choque de um carro.

Jean-Luc é criador e criatura nascido e expelido da Nouvelle Vague – termo cunhado pela jornalista suíça, naturalizada francesa, Françoise Giroud, sobre o movimento que influenciou e modificou a percepção do mundo, devido às revoluções que trazia não somente para o cinema, mas para a cultura em geral – com essa abertura e facilidades para se filmar e recortar o cotidiano ao prazer do autor, ou segundo a sua intenção estética, crítica ou introspectiva na criação cinematográfica.

Sua Nouvelle vague, ou (nova onda), surge no momento em que se segue o período pós segunda guerra, e a França, ainda que tenha saído vencedora, apresenta marcas profundas da ocupação nazista. Ao mesmo tempo que tenta se reconstruir, depara-se agora com a investida da invasão do cinema norte-americano, industrial e com formatos padronizados, visando o mercado internacional.

Neste momento, o instinto de resistência toma conta do grupo de críticos que se juntam e criam a revista chamada Cahiers du cinéma, ancorada nos ideais e propostas do cinema autoral, que tem em seus primeiros teóricos Alexandre Astruc, seguido de François Truffaut.

Esse grupo ao qual pertenceu Jean-Luc Godard, pautava-se na ideia de uma câmera livre, que foi chamada por Astruc de “camera-stylo”, numa comparação à liberdade que o escritor tem junto à sua caneta, (ou, na contemporaneidade, o tablet, celular, computador), que se solta para os seus pensamentos livres e que não segue moldes pré-definidos, embora eles existam. Libertando-se dos padrões formatados, a relação do cineasta com a câmera é algo que transita entre a objetiva e o olhar subjetivo, por uma fluidez individual e pelo sentido que este imprime através dela.

Cheia de expressões representativas desse novo modo de ver-sentir e amplificar o paradoxo da vida, a lente busca aproximar-se das demais obras de arte em que a liberdade dos sentidos sejam sobrepostos às narrativas lineares e pré-estabelecidas que se apresentavam anteriormente. Uma escultura, um poema, a dança, o fluxo de consciência. A intenção por trás do olhar que captura determinado instante, em constante mutação.

Como um reflexo individual das percepções do próprio homem e sua câmera, o cinema, como obra de arte, imprime agora o pensamento e a visão pessoal do diretor. E a condução da câmera se faz de modo muito íntimo entre quem filma e o que ela capta.

Godard, e toda a sua geração, tiveram o caminho aberto e muito inspirado pelo cinema italiano e seu neorrealismo que levava a câmera às ruas, numa proposta esteticamente documental, como no caso de “Roma, cidade aberta” (1945), de Roberto Rossellini, em que retratava a situação de miséria e autoritarismo que oprimia a população e sua tentativa de resistência, presentes no contexto da guerra em que se fizeram as produções. Também Vittorio De Sica e seu “Ladrões de bicicleta” (1948), que denunciava a situação de desamparo da sociedade na Itália derrotada após a guerra, e tantos outros neorrealistas italianos influenciaram muito essa liberdade de se levar as câmeras para as ruas. E vasculhar as imagens cotidianas e reais das cidades.

A tecnologia, em mais um paradoxo constrangedor da realidade, e, na contramão da situação econômica em que se encontrava a Europa neste período, havia sido aprimorada como artefato bélico pelas lideranças dos países em disputa. E, culminando em câmeras mais leves e versáteis acabou se tornando justamente o instrumento que viria a denunciar e fazer pensar todo esse contexto. E colaborou para o movimento da saída dos estúdios para as ruas e outros espaços possíveis, de modo que o cineasta não necessitasse despender tantos recursos para suas produções. Ainda mais neste momento em que não havia muitas possibilidades financeiras, dado ao momento político e econômico da Europa como um todo, mas também pela chegada massiva dos filmes americanos que tomavam conta das bilheterias dos cinemas no mundo todo.

Enquanto os italianos se concentravam nas questões sociais e políticas, os franceses partiram para uma vertente existencialista e focada nas questões do indivíduo e a liberdade. A transgressão estética viria junto com a revolução frente a questões moralistas, em contraposição ao que o cinema americano tentava impor ao mundo pós guerra dividido entre “nós” e “eles”. Os “bons” contra os “maus”, fossem eles indivíduos, costumes ou países. O mundo entrava em plena Guerra fria.

Em Godard, como em seus contemporâneos da nova onda, a liberdade e a fragmentação do uso das imagens vieram em justaposição às temáticas abordadas em seus filmes referentes ao que é inerente ao ser humano, à alma humana e às suas percepções mais instintivas, contradições e atemporalidades. Os cortes e os improvisos que traziam maior liberdade aos atores se mesclavam às abordagens que se apresentavam também mais liberais em seus filmes.

E, essa nova forma de concepção fílmica encontrou no Brasil uma profunda ressonância nas produções do movimento Cinema Novo, como as de Nelson Pereira dos Santos, quando filma o aclamado “Rio 40 graus” (1955), que sobe os morros, desconhecidos até então da maior parte de seu próprio país. E foi considerado, em 2015, um dos 100 filmes mais importantes do cinema brasileiro. O novo cinema se faz presente também e, principalmente, em Glauber Rocha, que apresenta em sua estética elementos que dialogam diretamente com as obras de Godard e Truffaut, embora ainda tenha mais proximidade e confluências com as propostas de Jean-Luc. Seus filmes ampliam elementos altamente sensoriais e não-lineares. A sonoridade, as cores representativas, as imagens sobrepostas e frases de efeito repetidamente são inseridas em montagens fragmentadas. Como a voz catequista, desconcertante, do padre jesuíta que ecoa no Congo e em outros países do continente africano, em “O leão de sete cabeças” (1970), ou na imposição perturbadora da fala do político no Brasil, em “Terra em transe” (1967). Tudo isso se apresenta em imagens aparentemente desconexas e depois juntadas e rejuntadas, em ambos os filmes. Colagens que reconstroem os embates e denúncias apresentados em seus filmes explicitamente críticos e políticos, sobre temas ainda tão atuais. E, da mesma maneira à la nouvelle, o lema dos representantes do Cinema novo no Brasil era também “Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão.”

Junto a essas referências e confluências citadas acima, muito já se foi falado sobre as centenas de produções de Jean-Luc Godard que inicia seu trabalho com longas-metragens nessa “onda” dirigindo a obra roteirizada por Truffaut intitulada “Acossado” (1960).  E, após explorar todas as possibilidades estéticas vanguardistas dessa mesma onda, para o seu espírito inquieto e inovador, ela se esvai na praia. E Godard parte para outras propostas e vai se juntando a novos movimentos e conceitos que retomam outros anteriores, sempre respeitando o que seu olhar e seus sentidos encontram. Como a citação do personagem Ferdinand, na primeira cena do filme “Pierrot le fou” (“O demônio das onze horas”, no Brasil):

“Não mais descrever a vida das pessoas, mas a vida, apenas a vida, o que há entre as pessoas, o espaço, o som e as cores.”

Sendo esta, uma paráfrase da fala da escritora Élie Faure em sua obra “História da arte”, percebemos a essência não somente da obra, mas também da vida do poeta da imagem Jean-Luc Godard.

“Mas não estou dizendo nada

que não possa ser dito

do espetáculo das variedades

 

eu

que não passo de um artista

do espetáculo de variedades”

 

(Jean-Luc Godard, em História(s) do cinema, círculo de poemas, tradução de Zéfere, 2022)

 

 

Exausto, Godard decidiu-se ir.

É 2022.

E, quando penso em seu último movimento, em pleno século XXI, em que tão pouco se descreve a vida, e o que há entre as pessoas, só consigo me lembrar de seu filme “Alphaville” (1965).  E quando uma inteligência não-humana refere, descreve e infere justamente sobre a vida das pessoas e suas relações, sem tempo nem espaço, a “camera-stylo” já deu lugar ao “supercomputador Alpha 60”. Seja nos tablets, nos celulares e enfim, no metaverso.

Hoje, entendo ainda mais o seu “Alphaville” e o banimento das palavras “amor” e “por quê” do vocabulário. Talvez não exista mais amor na era das redes artificiais. Não perguntemos por quê.

Jean-Luc Godard, o último poema do século XX.

 

E, assim como Glauber Rocha, cito novamente Drummond. “Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.”

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Juliana Schroden

É atriz e escritora, e estudiosa das relações entre cinema e literatura. Nascida em Uberaba, Minas Gerais. É Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia e realizou estágio doutoral na Université Sorbonne Nouvelle-Paris-3.

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