REGIONAL

O sino da minha terra
ainda bate às primeiras sextas-feiras,
por devoção ao coração de Jesus.
Em que outro lugar do mundo isto acontece?
Em que outro brasil se escrevem cartas assim:
o santo padre Pio xii deixou pra morrer logo hoje,
último dia das apurações.
Guardamos os foguetes.
Em respeito de sua santidade não soltamos.
Nós vamos indo do mesmo jeito,
não remamos, nem descemos da canoa.
Esta semana foi a festa de São Francisco,
fiz este canto imitado:
louvado sejas, meu Senhor,
pela flor da maria-preta,
por cujo odor e doçura
as formigas e abelhas endoidecem,
cuja forma humílima me atrai,
me instiga o pensamento
de que não preciso ser jovem nem bonita
para atrair os homens e o que neles
ferroa como nos zangões.
Meu estômago enjoa.
Há circunvoluções intestinas no país.
Queria que tudo estivesse bem.
Queria ficar noiva hoje
e ir sozinha com meu noivo
assistir a Os cangaceiros no cinema.
Queria que nossa fé fosse como está escrito:
AQUELE QUE CRÊ VIVERÁ PARA SEMPRE.
Isto é tão espantoso
que me retiro para meditar.
Espero que ao leres esta
estejas gozando saúde,
felicidade e paz junto aos teus


O coração disparado (1978) – Prêmio Jabuti, Adélia Prado

Foto de Adélia Prado

Adélia Prado

(Divinópolis, 13 de dezembro de 1935) é poetisa, contista, romancista, professora e filósofa. Ligada ao Modernismo, é considerada uma das maiores vozes da poesia brasileira contemporânea. Sua obra retrata o cotidiano com encantamento e profundidade, marcada por uma fé cristã constante e um tom lúdico e singular. Em 1976, enviou o manuscrito de Bagagem ao crítico Affonso Romano de Sant'Anna, que o encaminhou a Carlos Drummond de Andrade. Drummond, impressionado, incentivou sua publicação em artigo no Jornal do Brasil, marcando a estreia de Adélia na literatura. Antes da carreira literária, exerceu o magistério por 24 anos. Sua escrita contribuiu significativamente para a valorização da experiência feminina na literatura brasileira, unindo os papéis de intelectual, mãe, esposa e dona de casa. Em 2024, Adélia tornou-se a terceira brasileira – e a primeira mineira – a receber o Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa.

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