Soube ontem, com pesar e indignação, que a biblioteca de Jorge de Lima (1893-1953) foi vendida como papel de reciclagem e enviada para um lixão. Vejam: o poeta de Invenção de Orfeu, cujo nome deveria ser sinônimo de transcendência na literatura brasileira, teve seu legado intelectual tratado como descarte. Não apenas livros — mas um pedaço da história literária do país, um mapa de ideias e inspirações que poderiam iluminar gerações, reduzido a lixo.
A grandeza de Jorge de Lima, poeta, médico e alquimista das palavras, não cabe em explicações rápidas. Ele era alguém que transitava entre os extremos da condição humana, entre a aspereza do sertão e a busca pelo divino, entre a modernidade desbravadora e o lirismo atemporal. Sua obra não é apenas um monumento à literatura brasileira; é um mergulho nas profundezas do espírito humano, na busca pela beleza e pela ordem em meio ao caos. E agora, sua biblioteca — que, certamente, guardava volumes repletos de notas marginais, sublinhados, rastros de sua mente em movimento — é tratada como lixo. Livros que Jorge deve ter tocado, lido, ponderado. Obras que o moldaram e que, de algum modo, foram absorvidas e transformadas na matéria-prima de sua poesia. É um destino que não ofende apenas ao escritor, mas a todos que ainda acreditam no papel da memória, na centralidade da cultura e na capacidade dos livros de mudar o mundo.
Não se trata apenas de uma biblioteca destruída. Trata-se de um sintoma mais profundo de um país que não valoriza suas bases culturais, que não entende o significado do que tem. A biblioteca de um poeta não é jamais um amontoado de papéis velhos; é um testemunho de um espírito inquieto, de uma mente que buscava compreender e nomear o mundo. Jogar isso fora é como jogar fora um pedaço da alma nacional.
Por isso, não posso deixar de pensar no significado desse episódio. É como se, enquanto nação, estivéssemos dizendo que o Brasil de Jorge de Lima não nos interessa mais — e, ao dizermos isso, declaramos também que não nos interessamos mais por nós mesmos.
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Este não é um problema de uma biblioteca perdida, mas de uma visão de mundo em colapso. Vivemos numa época que idolatra o efêmero e despreza o que é duradouro. Uma época que consome imagens rápidas e descarta palavras eternas. A biblioteca de Jorge de Lima foi tratada como lixo porque não aprendemos a olhar para trás.
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O destino da biblioteca dele não é apenas uma tragédia isolada. É um lembrete doloroso de que, enquanto projeto de civilização, falhamos. Falhamos em preservar, em honrar, em cuidar do que realmente importa. E quando o Brasil descarta Jorge de Lima, descarta a mim, a você; descarta a si mesmo.