No primeiro capítulo de Dom Casmurro, a pretexto de explicar o termo pouco usual que dá título ao livro, o narrador Bento Santiago recomenda ao leitor: “Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo”. Nos 50 anos que se seguiram à publicação do icônico romance de Machado de Assis, leitores e críticos obedeceram ao narrador, aceitando como sinônimo de introspectivo e calado o apelido que os vizinhos deram a Bento Santiago. Até que uma mulher deixou de cumprir a recomendação do narrador e consultou um dicionário.
A professora, tradutora e crítica literária norte-americana Helen Caldwell traduzia o romance para o inglês, no final da década de 1940, quando consultou o Dicionário Aulete (1881)[1] para encontrar sinônimos de casmurro. O verbete originalmente traz a seguinte acepção: “adj. teimoso, obstinado, cabeçudo”. A tradutora percebeu, de pronto, que aquele narrador não era confiável. E foi a primeira pessoa a elaborar e publicar um novo modo de ler a obra, lançando a (agora) famigerada dúvida: “Capitu traiu ou não?”
Verdade seja dita: Caldwell não teve dúvidas sobre a inocência de Capitu. Mas, ensinou os leitores a desconfiarem do narrador machadiano que, até então, gozava da mesma autoridade moral do próprio autor. Ressalte-se que a autoridade de Machado de Assis foi construída em vida e (re)legitimada no período do Estado Novo, correspondente ao centenário do seu nascimento. Se hoje nos parece ingênuo e até absurdo tomar como verdade o que Bento e Brás Cubas narram é porque no meio do caminho tinha um dicionário.
O dicionarista
O prestígio do lexicógrafo, gramático e professor português Francisco Julio Caldas Aulete junto ao escritor brasileiro fica evidente em uma crônica publicada por Machado em A Semana, em 25 de novembro de 1894, três anos após a publicação do seu referido dicionário e cinco anos antes do lançamento de Dom Casmurro. Ali, ao zombar do gramático purista Dr. Castro Lopes, criador de neologismos como convescote e cardápio para substituir estrangeirismos pique-nique e menu, Machado revela sua preferência pela naturalidade linguística e pela riqueza idiomática já presente no uso cotidiano, dizendo:
Eis aí um mistério, tanto mais profundo quanto que eu, quando era rapaz (anteontem, pouco mais ou menos), lia e escrevia pique-nique, à francesa. Que a forma pic-nic nos viesse de Portugal nos livros e correspondências dos últimos anos sendo a forma que mais se ajusta à pronúncia da nossa antiga metrópole, é o que primeiro ocorre aos inadvertidos. Eu, sem negar que assim escrevam os últimos livros e correspondências daquela origem, lembrei que Caldas Aulete adota pique-nique; resposta que não presta muito para o caso, mas não tenho outra à mão. (ASSIS, 2015, VI, grifo meu)
Mais que uma sátira ao purismo de Castro Lopes, essa crônica traz uma reveladora menção ao dicionário de Caldas Aulete, posteriormente consultado por Helen Caldwell: “lembrei que Caldas Aulete adota pique-nique; resposta que não presta muito para o caso, mas não tenho outra à mão.” A frase, embora carregue deboche, aponta Aulete como uma referência legítima, especialmente em oposição ao artificialismo de Castro Lopes. A ironia machadiana aqui não apenas poupa, mas também reconhece a autoridade de Aulete em relação à língua portuguesa, indicando confiança na obra do dicionarista.
Essa passagem também pode ser interpretada como uma homenagem sutil ao lexicógrafo, falecido em 1878, e como uma expressão da própria vaidade: Machado afirma que sua intuição linguística, desde jovem, coincidia com visão do renomado lexicógrafo, bem antes da publicação do dicionário.
A deferência a Aulete reforça, portanto, o argumento de que o narrador Bento Santiago, ao alertar o leitor para não consultar dicionários, manipula o sentido de casmurro com base em uma autoridade lexical que, por sua vez, tinha valor cultural reconhecido, ao menos (ou, sobretudo) por Machado. Essa relação entre narrativa, léxico e ambiguidade fortalece a leitura de Caldwell, que usou a consulta ao dicionário, contrariando a instrução do narrador, como uma pista para começar a leitura crítica do romance e, com isso, percebeu que o narrador machadiano, especialmente em primeira pessoa, não é confiável. Percepção essa que modificou irreversivelmente as formas de ler Machado.
Caldwell percebeu também que a manipulação linguística de Machado foi capaz de influenciar os dicionários publicados posteriormente a adotarem a acepção dada por seu narrador-personagem. Em carta a Cecil Hamley, o editor da sua tradução para o inglês de Dom Casmurro, ela relata:
Há um dado interessante sobre a palavra casmurro. O romance claramente teve influência sobre os dicionários. Os mais antigos, como o Aulete, dão apenas o sentido de “teimoso, obstinado, cabeçudo”. Dicionários mais recentes incluem outro significado, aquele oferecido no Capítulo 1 de Dom Casmurro, e alguns até usam palavras idênticas; o Laudelino Freire cita a frase do início, “Não consultes dicionários”. (Guimarães, 2019)
A palavra casmurro, como revelam os dicionários da época, não se limita à introspecção. Pelo contrário: traz as acepções de teimosia, obstinação, rudeza: traços que Bento omite ou suaviza ao atribuir ao “vulgo” a definição de “homem calado e metido consigo”. A escolha de se apropriar de um apelido e reconfigurá-lo é, portanto, um ato de manipulação simbólica. O narrador não apenas reescreve sua história, mas também tenta reconfigurar o léxico. E é nesse gesto que se revela o verdadeiro casmurro: não o homem silencioso, mas o sujeito que se recusa a ceder à pluralidade de sentidos, e quer impor uma leitura única: a sua.
(captura de tela da apresentação
do Dicionário Aulete, de 1881)
Curiosamente, à época da publicação de Dom Casmurro (1899), o único dicionário que registrava o verbete casmurro era o de Caldas Aulete, lançado em 1881[2]. Isso já sugere que se tratava de uma palavra de circulação restrita, talvez erudita, o que torna ainda mais controverso o gesto de Bento Santiago de atribuir ao “vulgo” uma definição que contradiz o registro lexicográfico. O “homem calado e metido consigo” não é exatamente o que Aulete descreve e Bento, culto e rico, sabe disso e, ao “desautorizar” o dicionário, ele tenta desautorizar também o leitor que ousa buscar sentidos fora da sua narrativa. É como se dissesse: “não me leia com olhos externos, leia-me com os meus”.
Esse gesto traz uma tensão fundamental entre linguagem e poder. O narrador, ao controlar o sentido das palavras, deslegitima a visão de terceiros sobre ele próprio. O significado de Casmurro no Aulete é um empecilho à sustentação oral que o advogado Bento Santiago elabora em sua própria defesa, para acusar sua ex-mulher de um crime sem provas e do qual não há testemunhas. A exemplo de Caldwell, que não se deixou persuadir, os leitores fariam um julgamento imparcial e mais preciso, caso consultassem dicionários desde a publicação da obra.
Referências:
GUIMARÃES, H.S. HELEN CALDWELL, CECIL HEMLEY E OS JULGAMENTOS DE DOM CASMURRO. Machado de Assis em Linha, São Paulo, v. 12, n. 27, p. 113-141, agosto 2019. Disponível em <http://machadodeassis.fflch.usp.br>
[1] A obra original pode ser consultada em https://bibdig.biblioteca.unesp.br/
[2] Para este artigo foram consultados os dicionários existentes até 1899, a saber: Morais e Silva (1789), Constâncio (1836), Roquette (1856)

Paula Rosiska
Paula Rosiska possui bacharelado e mestrado em Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo - USP, e é professora da rede pública de ensino da capital paulista. Em 2021, publicou o livro Vida ao rés do chão escolar: crônicas da sala de aula (Editora Lux). Atualmente, desenvolve pesquisa nas áreas da Lexicografia, Morfologia Histórica da Língua Portuguesa e Etimologia.