É assim mesmo que consta no crachá da mocinha que te conduz na cadeira de rodas pelos corredores do hospital. Sua natureza alegre, faladeira, confia nas graças da vida, de modo que você sequer se imagina doente esvoaçando ambos no caminho. Sua voz limpa, de menina, fala da vida, desse seu novo emprego, e te leva a crer que tudo se resume em haver amanhã.
Pergunto-lhe de onde veio seu nome, se da canção dos Beatles. Diz que não, que foi do gosto do pai. Pergunto-lhe se conhece a canção dos Beatles. “Um professor cantava ela pra mim”.
Acho que conheço esse professor. Antes de ficar velho e doente era um adolescente que ouvia Michelle de olhos fechados.
Eu bem queria olhar para Mishele, mas ela estava atrás de mim, me empurrando e contando coisas sem parar. Pensei em cantarolar para ela a canção dos Beatles, mas já havíamos chegado à porta da ecografia.
Agora à minha frente, Mishele me ajudou a descer e falou que tudo ia dar certo, que logo viria me buscar. Agradeci pela viagem. Ela manobrou a cadeira de rodas e dobrou a curva do corredor.
E não é que veio mesmo me buscar? Foi me levando de volta ao quarto, alegre com as graças da vida, falando muito. Como sou uma pessoa pernóstica, me desliguei por um segundo da presença dela, pensando em Ítaca.
Mas Mishele estava ali, perto de mim, e ali ficou.

Alcides Villaça
é poeta, ensaísta e crítico literário brasileiro. É professor da Universidade de São Paulo desde 1973, tendo como foco de pesquisa a literatura brasileira, particularmente Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Ferreira Gullar e João Cabral de Melo Neto