Nunca me fascinaram as megaestores associadas aos livros; minha “biblioteca de babel” habita os pequenos sebos em tardes chuvosas entre olhares furtivos nas prateleiras revelando um fascínio cúmplice. Quando adentrava a faraônica Cultura perdia a medida humana de leitor em busca duma conversa saborosa sobre uma reedição possível de “A Hora dos Assassinos” de Henry Miller sobre Rimbaud ou alguma nova fornada sobre arte homoerótica da Taschen. Na verdade, as artes plásticas ocupavam outra loja mais meiga ali ao lado em frente a salas de cinema que certa época tinha alcunha comercial de “Cine Bom Bril”. O mercado contamina relações, estética e arquitetura com uma grandiloqüência que sufoca. Apreciava os encontros certeiros com Evandro Affonso Ferreira onipresente chapéu e opiniões inusitadas no café fervilhante com Marcelo Rubens Paiva e Léo Lama, ambos santistas de alguma forma pelo time, filiação ou simpatia. Pedro Paulo Sena Madureira sobranceiro divisava amiúde. A cisma era com a frescura de só vender cerveja long neck, além de cara, só tinha como desafogo um banheiro que contrastava com a monumentalidade do shopping literário. Parecia um lavabo de casa de bonecas. Por lá cruzei com Laerte da primeira fase de cross-dressing, beberiquei com o querido romancista amigo Lucius de Mello biografado premiado com a “Enny de Bauru” e, claro, papeava solto com mestre Claudio Willer que, como eu, destoava do burburinho ‘ver e ser visto’ do pé direito avassalador. Não esqueço dum crime devastador: um jovem interessado em livros de arte morto a pauladas de taco de beisebol por um psicopata solto pela Avenida Paulista. O ato gratuito abjeto me marcou para sempre pelo sorriso do rapaz e sua dedicação ao desenho. Assisti a um lindo monólogo com Juca de Oliveira com variações a partir do “Rei Lear” no Eva Herz. Pedro Herz altaneiro pelos corredores do Conjunto Nacional exalava a arrogância ‘megalô’ dum Hearst do circuito livreiro. Não me recordo de livros comprados na Cultura a não ser os meus próprios editados pela “7 Letras”, querida editora carioca que revelou uma geração de autores no ‘fin de siècle’ passado. A saída pela Augusta me parecia acolhedora quando farejava melhor boteco longe do turbilhão refrigerado. Nenhuma antipatia pela Cultura, sabia da sua função de divulgação do livro ao seu modo exacerbado, é questão de psicologia do poeta não confortável em grandes espaços e a azáfama burguesa. Tinha sim gente bonita da Faap, dos Jardins, rapazes sarados com algum pendor cultural, mas como diria Bandeira: eu queria mesmo o beco! Folhear alguma nova biografia de Pasolini no “Garoa Paulista” ou na Augusta com Luis Coelho. Lançamentos? Recordo de Rubem Alves já doente, que mestre! Encontro marcante? Um nonagenário pelas cinco da tarde perguntando para o vendedor sobre “Um gosto e seis vinténs” , biografia romanceada de Gauguin escrita por Somerset Maugham. Quem lê ainda Somerset Maugham? Intervi com curiosidade ajudando o gajo a rastrear essa raridade já esgotada pela Globo de Porto Alegre. Teria nova tradução? Sei que isso ensejou uma boa conversa. Era o compositor da linha de Guarnieri avessa às vanguardas de Oswaldo Lacerda casado com a antológica pianista Eudóxia de Barros. As mudanças profundas do setor já vão além do varejo, não me espanto e torço pelas livrarias de rua, sim, mas a luta é pela democratização do acesso aos livros pelas quebradas, as periferias que estão ‘bombando’ de criação em todas as artes. A inteligência artificial e sua interconexão com a literatura em especial já me tomam bom tempo. Logicamente não falo da velha Cultura ao lado do velho Cine Astor, falo de relações humanas que sim fazem falta. A interlocução com colegas autores, a troca com quem tem interesse por literatura segue. ‘Re-insistir’, como diz Zé Celso que nunca cruzei na agora extinta Cultura. O livro persiste, políticas públicas para eles são nossa causa…
Flávio Viegas Amoreira
Escritor, poeta e crítico literário. Colunista da seção “Terra em Transes” da Revista Piparote. Contato do autor: [email protected]