A palavra “levante” origina-se do francês levant a partir do étimo latino levare, cujos primeiros significados estão entre erguer e nascer. Já a palavra água, que também, de certo modo, é legado latino, tem origens mais profundas (ou turvas) remontando a uma forma indo-europeia que só pode ser acessada hoje por uma reconstrução linguística quase matemática «h₂ékʷeh₂», uma tentativa, talvez, de acessar a infância da linguagem humana. Esse movimento em torno da etimologia das palavras tenta refazer o percurso inicial que junta os dois substantivos no título do livro de Leila Tabosa, O levante das águas (Urutau, 2025). Um título em um livro de poesia é coisa das mais importantes: pode ser, ele mesmo, síntese do próprio labor poético. Mas há livros de poesia com títulos terríveis, bem se sabe, mas com bom conteúdo. E há livros de poesia com títulos luminosos e resultados pífios. Aqui temos um belíssimo título para uma poesia que se ergue igualmente instigante: O levante das águas é um anúncio alvissareiro.

Gaston Bachelard no seu ensaio A água e os sonhos (1997)[1] mergulha na psicologia simbólica do elemento água para dali extrair a profundidade do tema para além da construção das imagens, diz ele que “fora de qualquer metáfora, é necessária a união de uma atividade sonhadora e de uma atividade ideativa para produzir uma obra poética. A arte é natureza enxertada” (op. cit., p. 11). É com esse ânimo, de “natureza enxertada”, que Tabosa cria (ou recria) as águas que se levantam, águas insubmissas, políticas e, antes de qualquer coisa, águas femininas. Águas fabuladas em quatro afluentes (ou partes): Águas sagradas ou de (im)permissão social; Deságues nas figuras; Revoadas molhadas e outras águas e Águas de Encanto e de (des)alento.

É possível ler O levante das águas como mapa hidrográfico de um território que é indubitavelmente feminino. Se no poema homônimo, que abre o livro, se anuncia que “drones desassossegam a natureza privada da mulher”, de fato todas as figurações poéticas apontam para a territorialização perturbada desse corpo de água, maternal, simultaneamente forte e vulnerável, material e simbólico, em uma efetiva junção entre a paisagem natural e o corpo humano atingido por um sistema que o exclui de uma totalidade. Uma mulher não exerce seu estar no mundo sem antes passar pelos marcadores sociais e recortes biológicos e de gênero. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, diz Simone de Beauvoir. Ou se é tornada. 

Não por acaso, no poema panos de mulher, a vida feminina em seus ciclos orgânicos, da meninice à menopausa, configura o texto poético como um “poema de formação”, roubando aqui a imagem do bildungsroman, gênero romanesco que descreve a jornada de crescimento moral, físico e filosófico de um personagem. Tomando como certo esse “poema de formação”, temos um retrato dos termos e enfrentamentos que configuram a socialização feminina, não de uma personagem em particular, mas da mulher como construto social no recorte de gênero que independe da história individual de cada uma. Composto em seis “movimentos”, o poema, de partida, prenuncia o que toda menina deve saber ou aprender com as mulheres velhas, sobre os panos utilizados para conter a menstruação quando esta chegar: “o varal fica comprido com panos de diferentes tamanhos/para diferentes fluxos./ – De que tamanho serão os meus panos?”; e o percurso segue, da menarca à gestação, do puerpério ao climatério até a menopausa,plenitude de águas íntimas salgadas”. Há, pois, como ler aqui uma certa educação pelas águas.

Por outro lado, ao longo do livro, pelo seu curso, são também conjurados lugares, biomas, personagens mítico-espirituais e heroicos, escrituras, escritores e escritoras que fazem parte de uma conflagração de afetos poderosos que transformam/transtornam paisagens, realidades. E não seria essa uma função possível da poesia, caso a poesia operasse nesses termos? Ciente do funcionamento da “máquina” de criar imagens, a voz lírica oferece ao leitor figurações poderosas, capazes de movimentar sentidos e provocar novas leituras. É o que se vê, por exemplo, no poema o farol da praia, com os “espigões espelhados que espelham a orla”, ou em dragão do mar, na pergunta que parece conter em si a densidade de um poema inteiro: “Com quantas jangadas se faz uma revolução?”. O livro se transforma assim também em manifesto, um manifesto não panfletário, mas um artefato que está posto em determinada posição. Todo poema é um corpo político. Mesmo aqueles que falam de amor. Ainda mais um que se propõe a congregar territórios, múltiplos femininos, poderes.

Se as águas que se levantam nesse livro são de diferentes nomeações e geografias, de diferentes tradições e matérias, água de mar, de rio, de chuva, de açude, de represa, de cacimba, água que o corpo verte ou que no corpo transita, (“o mar da história é agitado”, avisa Vladímir Maiakóvski) é preciso que se atente que a (con)fabulação das águas empreendida também reverencia o cânone, mas dialogando com ele, o reinventando. Nesse sentido, se destaca a personagem que atravessa o poema a gata com sarna, dedicado a João Cabral de Melo Neto: se em Cabral o rio é tornado um cão sem plumas para pensar a vida de “aquoso pano sujo” de quem vive nos mocambos de suas margens, no poema de Leila Tabosa o rio é justamente a gata sarnenta que desliza envenenada e envenenando, espraiando a própria morte e a morte do mundo. Os rios Capibaribe e Mossoró transfigurados em uma transformação incessante entre o animal e o humano.

Mas, se na dedicatória de a gata com sarna se lê o cão cabralino, por outro lado não é possível não pensar também em Cadela Rosada, poema de Elizabeth Bishop, que se debruça sobre o destino terrível de uma cadela sarnenta, metáfora de uma condição feminina subalterna, de uma condição animal em que toda compaixão é negada. Tabosa dialoga com esses rios, essas tradições.

Liso como o ventre/ de uma cadela fecunda,/ o rio cresce/ sem nunca explodir” diz o poema de Cabral. “Você, no estado em que está, com esses peitos/jogada no rio/ afundava feito parafuso”, diz o poema de Bishop. “Estremece o rio/ o rabo comprido acena para cima e para baixo/ e rebola para os lados/ coça toda a sua sarna”, diz o poema de Tabosa.

A imaginação poética brinca com o tema. Joga-o no mundo. Chama seus pares em torno do círculo. Redemoinho dentro d’água se tem de sobra em O levante das águas, e convocando Bachelard ainda mais uma vez: 

Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e para dissolver a noite. Para sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade

É dessa matéria que O levante das águas se alimenta e se insufla.

[1] A água e os sonhos – Ensaio dobre a imaginação da matéria: Martins Fontes, São Paulo, 1997

O levante das águas
Leila Tabosa

idioma: português
encadernação: brochura
formato: 13×16,5 cm
páginas: 64 páginas
papel polén 90g
ano de edição: 2025
edição: 1ª

Foto de Leila Tabosa

Leila Tabosa

Nasceu em Fortaleza (CE). Mora no Rio Grande do Norte há quase trinta anos. Atua como professora em Mossoró (RN), cidade com a qual se reconhece. A escritora tem graduação em Letras (UFRN); mestrado em Literatura (UFRN); doutorado em Poéticas da Modernidade e da Pós-modernidade (UFRN; UNAM/PDSE); pós-doutorado em Literatura e Teatro (UFC). Como pesquisadora escreveu Soror Juana poeta cult (2023); na ficção, Ela nasceu lilás & outras mulheres (2024); entre roteiros para teatro, dramaturgia e outros escritos. O levante das águas é seu livro de estreia na poesia.

Foto de Micheliny Verunschk

Micheliny Verunschk

Micheliny Verunschk Pinto Machado, conhecida como Micheliny Verunschk, é uma escritora, crítica literária, compositora e historiadora brasileira. Finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura e vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2015 e do Prêmio Jabuti 2022.

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