Luis Marcio: “Linhas Horizontes” é descrito como uma colagem imagética que cria um retrato de simultaneidade. Como o senhor desenvolveu essa abordagem e como o conceito de sightlines inspirou seu processo de escrita?

Arthur Sze: Meu interesse pela simultaneidade cresceu ao longo do tempo. Quando comecei a escrever poesia, eu estava particularmente interessado na poesia lírica e em poemas curtos e condensados em um forte imaginário. À medida que meus poemas se tornaram mais longos, uma estrutura narrativa mostrou-se útil, mas percebi que uma narrativa única era pouco abrangente e não parecia fiel à minha experiência do mundo. Comecei a explorar justaposições radicais, onde mundos diferentes interagiam entre si. Também me interessei pela ideia de sincronicidade de Carl Jung, que ele define como uma significativa conexão sem causa. Do ponto de vista da sincronicidade, alguém amarrando seus sapatos pode se conectar, no tempo, a um acidente de carro. Não se pode dizer que um evento cause o outro, mas é possível imaginar que o mundo está conectado de maneiras misteriosas que não conseguimos ver ou prever de imediato. A física contemporânea chama isso de entrelaçamento, onde um evento em um determinado lugar está instantaneamente ligado a outro evento em um local remoto. Ainda não podemos compreendê-lo totalmente, mas essa é uma visão do mundo que me interessa. Com o tempo, meus poemas passaram a se apropriar de justaposições onde muitos eventos diferentes e mundos diversos entravam em tensão e relação uns com os outros. Senti-me estimulado a escrever muitos tipos distintos de poemas, o que exigia múltiplas formas.

Uma das novas formas que particularmente me interessou foi a escrita em monósticos, estrofes de um só verso, em que cada verso encarnava uma experiência momentânea do mundo e em que, de estrofe em estrofe, esse microcosmo de versos podia acumular-se até formar um macrocosmo. Cada verso individual assemelhava-se a uma linha de visão, um ponto de vista momentâneo na mente e no corpo do narrador. Escrever poemas em monósticos, ou linhas de visão isoladas, inspirou meu processo de escrita a tornar-se mais associativo, mais aberto a saltos e menos vinculado à narrativa linear.

LM: Como vieram as ideias ou experiências para explorar temas tão diversos como a caligrafia com água em parques na China e Thomas Jefferson montando ossos de mamute no chão da Casa Branca?

AS: Esses dois poemas, “Caligrafia com Água” e “Círculo Preto”, nasceram da observação, mas de maneiras muito diferentes. Viajei extensivamente pela China e, em uma dessas viagens, por acaso visitei um parque em Chengdu, bem cedo pela manhã. Fiquei maravilhado ao ver um senhor idoso carregando um balde d’água com um longo bambu ao qual estava preso um pincel de espuma. Observei enquanto ele parou em uma passarela de ardósia e começou a escrever belos caracteres chineses com água. É claro que, em pouco tempo, a água evapora, e todos os caracteres desaparecem. Encantou-me que a ideia de transitoriedade, de efemeridade, fosse essencial ao sentido daquilo. Então senti o impulso de escrever um poema, e, ao escrever, percebi rapidamente que o poema seria complexo e precisaria de uma estrutura de sequências, onde eu pudesse alternar lugar, tempo e voz de uma seção para outra. Criei primeiro a quinta seção, na voz de um homem que escreve caligrafia com água, mas que, ao fazê-lo, relembra memórias dolorosas, como as de ser espancado durante a Revolução Cultural [Chinesa]. Um trecho levou a outro e deixei o poema se acumular ao longo do tempo. Por fim, ele resultou em sete seções.

“Círculo Preto” também acabou se desenvolvendo por um processo associativo, mas aqui o gérmen foi estar conduzindo à noite e ter passado por um acidente ou cena de um crime no lado oposto da rodovia. Vi as luzes vermelhas, brancas e azuis dos carros de polícia e da ambulância, e imediatamente associei essas cores às da bandeira estadunidense. Alterei a ordem das cores no poema para “luzes vermelhas, azuis e brancas”, para que a referência aos Estados Unidos fosse mais indireta. E, ao refletir sobre como os Estados Unidos e o mundo estão em crise, lembrei-me subitamente de que a luz branca contém todas as cores do espectro ou do arco-íris dentro de si. Fiquei entusiasmado em criar uma metáfora onde todas as línguas do mundo representassem a totalidade, a luz branca; mas, como uma língua desaparece do nosso planeta a cada duas semanas, imaginei que cada língua representasse um tom de cor e, quando uma delas se extingue, essa perda de línguas teria um impacto visual. Pensando sobre os Estados Unidos, lembrei-me de Thomas Jefferson como um símbolo inicial e problemático da América. Queria encontrar algo sobre ele que pudesse usar no poema e, em minhas pesquisas, descobri que Jefferson enviou ossos de um mastodonte à Casa Branca e tentou montar todos os ossos para impressionar líderes europeus com algo de grandeza unicamente americana. Ele não conseguiu fazê-lo, e essa imagem de incompletude e perda me pareceu importante para o poema. Curiosamente, na sequência de imagens que se desdobram, a tentativa fracassada de Jefferson de montar os ossos leva diretamente à imagem do último falante de uma língua e à perda dos matizes de luz. E, em seguida, essa perda leva ao acidente de carro ou cena de crime na rodovia, onde as “luzes vermelhas, azuis e brancas” brilham na escuridão.

LM: Seu livro toca em questões ambientais, mostrando como os humanos estão colocando o planeta em risco. Quais são as suas preocupações principais? A poesia pode ajudar a conscientizar sobre esses temas?

AS: Acredito que nossos problemas ambientais são tão profundos e tão interligados que é importante reconhecer que essa complexidade é uma parte essencial do nosso mundo. Não quero que os poemas sejam didáticos — a poesia deve resistir a qualquer forma de coerção —, mas desejo salientar que o risco está por toda parte. Durante muitos anos, vivi em um vale rural a cerca de trinta quilômetros ao norte de Santa Fé, no Novo México. Muitas pessoas que visitam a região se impressionam com a vasta beleza da paisagem do alto deserto. No entanto, se você caminhar por essa paisagem e olhar para o oeste, poderá avistar um pequeno tanque de água no topo de uma mesa. Esse tanque demarca a localidade de Los Alamos, o berço da bomba atômica e o centro de desenvolvimento de armas nucleares na atualidade. Então, aquela paisagem pastoril se altera, e o perigo se torna uma força e um fator presente. Mais uma vez, não pretendo ser didático ou dizer o que alguém deve fazer, mas, como poeta, busco aprofundar nossa experiência de um mundo extremamente complexo. Como a poesia pode captar temas de urgência climática, acredito que ela pode conscientizar sobre as dificuldades sem oferecer soluções fáceis.

LM: O senhor utiliza uma ampla gama de vozes em “Linhas Horizontes”, desde líquens no teto até um homem atrasado no aluguel. Como são escolhidas essas vozes distintas?

AS: Comecei a usar uma variedade de vozes humanas em meus poemas, e gostava particularmente de utilizar as vozes de pessoas sob pressão emocional. Em “Caligrafia com Água”, na quinta seção, o narrador está sob pressão emocional ao recordar as torturas que sofreu durante a Revolução Cultural Chinesa, e essa pressão confere urgência às suas palavras. O homem que está com o aluguel atrasado também vive sob pressão emocional: ele não tem dinheiro para pagar e começa a pensar em fugir. Curiosamente, em ambas as passagens onde esses personagens falam em voz alta no poema, eles dizem algo e, sob a pressão emocional, interrompem-se e revisam o que acabaram de dizer. Para dar vida a esse processo, utilizo linhas tachadas, criando uma tensão entre o que é dito e o que o narrador afirma a seguir. Esse uso das linhas tachadas está relacionado à precisão: como as palavras são imprecisas, elas são tachadas; mas, por serem necessárias, continuam legíveis.

Ao escrever os poemas de “Linhas Horizontes”, senti o desejo de explorar múltiplas vozes e pontos de vista e decidi tentar escrever na voz de algo da natureza. A primeira possibilidade me ocorreu quando, certa manhã, saí do chuveiro e notei um líquen crescendo em uma viga de madeira no teto. Subitamente, pensei que poderia explorar o que o líquen diria a uma pessoa, e eu queria que o líquen falasse com urgência. Enquanto escrevia, decidi que o líquen não seguiria regras de pontuação e falaria, em vez disso, em um monólogo com pausas rítmicas, como um fluxo contínuo de linguagem. “Canção do Líquen” foi o primeiro poema que escrevi em uma voz não humana. Gostei e busquei algo mais a que pudesse dar voz. Certa manhã, enquanto cozinhava, estendi a mão para pegar sal e, de repente, lembrei-me de como tribos indígenas americanas fazem peregrinações até locais onde podem coletar sal. Decidi tentar escrever um poema naquela voz.

LM: Muitos de seus poemas têm uma qualidade cinematográfica, com cortes rápidos e cenas vívidas. O senhor se inspira em outras formas de arte, como o cinema, ao criar sua poesia? Se sim, quais diretores o influenciam?

AS: Assisto a pouquíssimos filmes, pois minha imaginação já está tão carregada de imagens que não desejo ou necessito de mais estímulos. Muitas décadas atrás – e aqui revelo minha idade –, quando eu estudava na Universidade da Califórnia em Berkeley, assistia a muitos filmes. Os cineastas daquela época que eu apreciava eram Kurosawa, Bergman e Fellini. Sempre gostei do ditame de Kurosawa: jamais desvie o olhar. Creio que seja um bom conselho para qualquer artista. Como artistas, precisamos ser capazes de adentrar as regiões mais sombrias da experiência e escrever a partir desses lugares; por mais obscuro que o material possa ser, se está em um poema, nunca será sombrio demais. Além disso, embora o cinema não seja uma grande influência para mim, extraio inspiração de muitas formas artísticas: pintura, caligrafia asiática, música, tecelagem, cerâmica – todas essas forças habitam a minha poesia.

LM: O senhor tem uma profunda conexão com o idioma chinês clássico, bem como com a língua inglesa. No poema “Linhas Horizontes”, o senhor escreve: “quando o último falante de uma língua morre, um tom de cor desaparece do espectro da luz visível.” Como sua experiência com essas duas línguas influenciou sua perspectiva e como isso se reflete em sua poesia?

AS: Nasci na cidade de Nova York e cresci com pais imigrantes chineses que falavam tanto em mandarim quanto em inglês. Essa exposição a duas línguas foi muito importante para a minha formação. Quando criança, não apenas ouvia o mandarim ser falado diariamente em nossa casa, mas lembro-me de ir à escola de língua chinesa nos fins de semana, sentar-me em uma carteira e escrever caracteres chineses repetidas vezes, tentando acertar a ordem e a proporção de cada traço. Anos depois, na faculdade, quando comecei a escrever poesia em inglês, iniciei a minha especialização em poesia para poder ter aulas de chinês e aprender a ler poesia da dinastia Tang, incluindo poemas de Li Bai, Du Fu e Wang Wei. Recentemente, publiquei uma edição expandida de minhas traduções de poesia chinesa para o inglês, “The Silk Dragon II”, que inclui traduções de 75 poemas de 29 poetas de todos os períodos da história chinesa. É minha própria mini antologia dos poemas que me inspiraram ao longo de minha trajetória de escrita. E, a partir dessa tradição da poesia chinesa, como poeta que escreve em inglês, aprendi a valorizar e priorizar as imagens visuais, a utilizar a justaposição (onde a justaposição pode até mesmo realizar a metáfora) e a pensar conscientemente sobre ritmo e silêncios.

LM: Um estudo recente da NASA apontou que o Brasil pode ficar inabitável daqui a 50 anos devido às mudanças climáticas e à destruição ambiental. Em “Linhas Horizontes”, o senhor menciona os incêndios deixando cicatrizes a cada verão e a preocupação com tanques de propano explodindo. Como é trabalhar com a poesia em ato crítico com a realidade e a invenção?

AS: Vivemos em um mundo totalmente desafiador, e acredito que a poesia tem um papel crucial a desempenhar na articulação das exigências do nosso tempo. A poesia é nossa linguagem essencial – para mim, é tão essencial quanto respirar – e, em um poema, cada termo, cada som e o ritmo de cada palavra importam. Como poeta, desejo proceder com cuidado, mas não estou preso à realidade. Quero usar a pressão e a urgência da realidade para tentar afirmar o poder da imaginação humana. Embora goste que os detalhes e fatos em meus poemas sejam precisos, estou disposto a alterar esses detalhes e a inventar novos em busca de uma verdade emocional e imaginativa. Podemos ter tangerinas negras em um poema, se isso for necessário. E essa fidelidade a uma verdade mais profunda se manifesta nas formas e tipos muito diversos de poemas que escrevi ao longo do tempo.

LM: Quais são seus próximos projetos? Existe algum tema ou forma que você está particularmente interessado em explorar no futuro?

AS: Tenho dois livros que serão lançados em abril de 2025. Meu décimo segundo livro de poesia, “Into the Hush”, será publicado pela Copper Canyon Press e, em paralelo, “The White Orchard: Selected Interviews, Essays, and Poems” será publicado pela Museum of New Mexico Press.

Em meu novo livro de poesia, sigo escrevendo uma série de poemas em monósticos, pois aprecio o poder elíptico e musical dessa forma, e continuei a fazer experiencias com vozes – tenho um poema na voz de um jaguar, outro na voz de um apagador –, além de explorar uma variedade de formas que nunca utilizei antes, buscando demonstrar como formas tradicionais ou importadas para o inglês podem ter usos significativos. Por exemplo, pela primeira vez escrevi um zuihitsu em inglês. Na literatura japonesa, o zuihitsu – os kanjis ou caracteres chineses para essa expressão significam “seguindo o pincel” – é escrito em prosa e segue um padrão associativo livre. Em meu texto, duas pessoas seguram um pincel e desenham simultaneamente um caractere em uma prática conhecida como “caligrafia a duas mentes”. As duas mentes precisam harmonizar-se para que suas mãos (corpos) criem, através do movimento e da quietude, um único caractere, o “vazio”. Esse poema sem título possui sete breves passagens em prosa, dispostas em pares e intercaladas por interlúdios anônimos ao longo do livro. Perto do fim, quando o caractere “vazio” está completo, o grupo final de poemas se abre para a plenitude.

Neste livro, também escrevi, pela primeira vez, dois pantuns, seguindo a estrutura formal, em que o segundo e o quarto versos da primeira estrofe se tornam o primeiro e o terceiro versos da estrofe seguinte. Contudo, fiquei entusiasmado em fazer uma inovação na forma, introduzindo “cesuras flutuantes”, de modo que as pausas/silêncios, que mudam de posição de um verso para o outro, alteram o ritmo dentro de cada verso. Incluí também séries, uma epístola, um haibun e dois “sonetos-sombra”, nos quais decidi não utilizar rima, como é habitual nas formas europeias, mas adaptei a estrutura: um dos “sonetos-sombra” tem uma arquitetura petrarquiana, enquanto o outro ecoa a shakespeariana. Não espero que o leitor perceba todas essas sutilezas, mas espero que, lendo com os olhos e o espírito abertos, ele reconheça uma profundidade e simplicidade bem trabalhada nesses novos poemas, que os torna instigantes e cativantes.

O segundo livro, “The White Orchard”, inclui sete entrevistas que realizei nos últimos vinte anos, e acredito que esses diálogos poderão trazer insights sobre a evolução da minha poesia. Os ensaios abordam os anos que passei ensinando estudantes indígenas de mais de duzentas tribos no Institute of American Indian Arts de Santa Fe, bem como minhas conexões pessoais com outros poetas asiático-americanos. O livro serve como um texto sobre a poesia e a poética que acompanham meus poemas novos e reunidos, “The Glass Constellation”, publicado em 2021, e “Sight Lines” (“Linhas Horizontes”), publicado em 2019.

Atualmente estou escrevendo novos poemas, um de cada vez, mas não posso falar sobre eles, pois preciso descobrir ainda o que vem depois.

Tradução: Júlio Bonatti

  • Livro físico
  • Autor: Arthur Sze
  • Tradução: Júlio Bonatti
  • Editora Piparote
  • 100 pág.
  • 1° edição (2024)

R$48,00

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