O cinema não morreu por insistência de gênios loucos e alguns diluidores brilhantes. Depois da pandemia custou para nos fazer voltar ao grande circuito, ter que atravessar abjetas praças de alimentação e adentrar a sala escura não mais em templos, nesses pasteurizados espaços homogeneizados que se passam por casas de espetáculo. Comecei o ano assistindo Os Fabelmans, de Spielberg, num rito de veneração com todos requisitos necessários: boa companhia cinéfila, muita nostalgia dos anos 70  e um quase-sem-jeito de me comportar de um aparato tão distante da nano-esfera a que se reduziu minha espectação carente de arte da forma que advenha. Nem ‘f…..´ repetir meu preito a Scorcese  com seu  Assassinos da lua das flores.  Mais de três horas e meia, não tenho coluna e concentração, por mais venerável o diretor que tanto amo.  Santo streaming!  Repondo estoque, quanta coisa tenho visto na “batcaverna” entre discos, livros e ideias do meu quarto-estúdio. Um novo Ozon, uma nova comédia de Ozpetek e ultimamente um novo Ruben Ostlend ou um novo de Isabel Coixet, mas eis que surge um novo Almodóvar que assisti com muita ansiedade no MUBI. Não um Almodóvar qualquer: um western por um espanhol e um curta em tempos de ditadura da imagem onipresente.  Essa estranha forma de vida, um curta, sim, mais exatamente 31 minutos que se desdobram em intermináveis possibilidades de ampliação aos destinos de dois amigos-amantes depois de vinte e cinco anos de distanciamento.

Um curta feito um conto delicado, conto que se conta conciso, compacto, um idílio concentrado de sutilezas, olhares truncados, esgares,  meios-tons ainda que concentrados numa trama abrupta.  Lembrai daquela teoria tchekhóviana da narrativa breve como uma tartaruga só recheio, entrecho, só o argumento inflável ao antes e depois, intuído e virtual para cada gosto.  Pouco importa de que lado chega Silva e como o recebe o xerife Jack, o que se tem é uma retomada como se tivessem se despedido ontem, afinal não é assim quando a cumplicidade de corpos e almas fala por si? Vem do horizonte e conclui num final inconcluso que poderia seguir as rotas dalgum conto de Sherwood Anderson ou Carson McCullers. Me ocorrem dois westerns clássicos que tangenciam a complexidade da fita almodovariana: Duelo de Titãs, de John Sturges, e o revolucionário, na temática, O último pôr do sol, de Robert Aldrich.  No primeiro entre os personagens de Kirk Douglas e Anthony Quinn deparamos a mesma triangulação dos nossos personagens gays com o filho de Silva.  No segundo até o Complexo de Electra, a estilização de incesto ‘rola’   na trama que conta com Kirk Douglas de novo, Rock Hudson e a langorosa Dorothy Malone. Dispensa dizer que Almodóvar não concede em nenhum momento a qualquer clichê gay, nenhum estereótipo pista/pinta:  surge o amor entre ´bears´, ursos sem retoque, o tesão respingando nas miradas furtivas e um orgulho mal contido a ver quem cede ao ´revival´ amoroso. É desejo na veia de homem que curte homem como saídos de Troia ou da Queroneia.  Eles se querem insanamente numa ambivalência angustiante (mais em Jack) e com uma potência irredutível a terminologias. Não se sabem gays, são cúmplices da carnalidade abalroando os afetos. Recorro a mestre Deleuze em seu Conversações

“Contra os que pensam ´eu sou isto, eu sou aquilo´, e que pensam assim de uma maneira psicanalítica (referência a sua infância ou destino), é preciso pensar em termo incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não narcísicas, não edipianas – nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza ´eu sou bicha´. O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano”. 

Almodóvar joga com o improvável deleuziano, subverte, erige dois personagens intransitivos. São seres da fronteira: diante da lei, das atribuições familiares, dos ditames estabelecidos.  São fortes como em Deleuze de novo ao analisar Godard: “As pessoas fortes não são as que ocupam um campo ou outro, é a fronteira que é potente”. Fortes duma vulnerabilidade exangue driblando a exteriorização de sentimentos na tensão paralisante.  Talvez o rastro de sêmen e a bunda quase juvenil de Silva num lance que imaginei fosse dar vez a um flashback sejam os rastros mais eloquentes extraindo alguma condescendência com o pingo de romance que se concedam. A escolha mesmo do roteiro é deslimite além das fronteiras ainda que não seja novidade essa exacerbação de testosterona, o paroxismo fálico, a endogenia masculina nos faroestes.  O pathos faiscando entre rupturas e  amalgamentos estéreis além do amor em si másculo. O filho em questão é o intruso expondo erro de escolhas nos interregnos do compromisso atávico entre os protagonistas. “O sentido do erotismo é a fusão, a supressão dos limites.” Diz-nos Bataille em um dos últimos escritos para completar definitivo: “O sentido último do erotismo é a morte.” Essa delícia em cápsula por estratégia e não elipse tem como fulcro ficcional o ´turning point´ de uma paixão. Poderia dizer que mestre Almodóvar lança mão de todos arquétipos do gênero, me reservo à apreciação das arquitraves seminais do western com acréscimo (quase radical ) da ausência do elemento feminino radicalizado não ser alusão a Eva tóxica de toda trama central e lance coadjuvante, Jack todo lei, todo preceitos, todo solidez aparente e Silva apelo a Dioniso. Aí as mulheres são putas, apêndices evanescentes no entorno do amor perenizado. Almodóvar intertextual onívoro, recorrer a quantas transversalidades enriqueçam sua obra de utiliza de um fado cantado e escrito!

Por Amália Rodrigues com substrato homoafetivo, estória cifrada como poderia ser Tu me acostumbrates, de Frank Dominguez, também hit gay igualmente cantado de modo personalíssima por nosso Caetano Veloso. Nenhuma estetização, o amor de Silva e  Jack não se inscreve nas categorias  proustianas de Sodoma  e Gomorra, nenhum eco do adorável Charlus.  Quem sabe laivos de Montaigne e La Boétie?  Quase automático associar a O Segredo de Brokeback Mountain.

Por que escolheu um formato que vence por nocaute, citando Cortazar? Por apostar na insuficiência e na deliberada sugestibilidade numa era de saturação sem filtro. Tão reduzido quanto A dama do cachorrinho (e olhe que não tão curto), de Tchekhóv, com pausas que são anos de abstenção. Sem proselitismo e espírito de franco-maçonaria, sem exclusivismo gay, o curta cresce para entendidos.  Voltando a Deleuze debruçado sobre Focault: “O visível, para ele, são os reflexos, as cintilações, os fulgores… Um criador é alguém que cria suas próprias impossibilidades, e, ao mesmo, tempo cria um possível…” 

Quantos possíveis Don Pedrito que presenciou décadas de sufocamento franquista não nos oferece?  Numa Espanha em alguns cenários tão acre, ácida, ´machesca´ tão similar ao Velho Oeste ou nosso Nordeste brasileiro de gestas e cavalhadas, desafios e duelos? Não foram poucos os westerns tendo como locação essa Espanha equina. O deslocamento do olhar tão nítido de Jack para a bunda de Silva é a fertilidade da homossexualidade molecular deleuziana, o comer com os olhos, a fissura, de novo Deleuze: “A homossexualidade é a verdade do amor.” Intransponibilidade que insiste, ínvidas esforços, totalizadora, pulsão imantada num lenço vermelho, detritos metonímicos. Um ´puzzle´ a ser esquadrinhado. Convido-os reassistir Essa estranha forma de vida.   

ESTRANHA FORMA DE VIDA
EXTRAÑA FORMA DE VIDA
Dirigido por Pedro Almodóvar
Espanha, 2023
Faroeste, Curta, Drama, LGBTQ+
Inglês
Português & mais 2
Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Pinterest
Telegram

NEWSLETTER: RECEBA NOVIDADES

© Copyright, 2023 - Revista Piparote
Todos os direitos reservados.
Piparote - marca registrada no INPI

plugins premium WordPress