Veneza é a cidade mais bonita do mundo. Não é muito antiga como as grandes cidades da Ásia contam o tempo. Tem quase a mesma idade de Londres. Os moralistas do século passado costumavam fazer comparações entre os dois lugares – mercantis, marítimos e imperiais – e alertar os londrinos de que eles poderiam declinar como os venezianos se dessem lugar ao luxo e à ostentação.
Londres não declinou. Deus sabe que há pouco luxo e nenhuma ostentação hoje. Desviamos nossos olhos dele com vergonha. E Veneza continua sendo a lição objetiva em um sentido muito diferente do previsto por nossos bisavós. Se todos os museus do Novo Mundo fossem esvaziados, se todos os edifícios famosos do Velho Mundo fossem destruídos e apenas Veneza fosse salva, haveria o suficiente para encher uma vida inteira de prazer. Veneza, com toda a sua complexidade e variedade, é em si mesmo a maior obra de arte sobrevivente do mundo.
Os venezianos chegaram às suas cem ilhas vindo do continente como refúgio dos invasores do norte. E um lugar de refúgio permaneceu. Todo mundo sabe que não há veículos com rodas em Veneza, mas só quem já experimentou pode apreciar o que isso significa. Agora há lanchas a motor. Os gondoleiros quase se extinguiram. Agora há apenas uma dúzia de gôndolas particulares.
Não muitos dos lugares estão nas mãos das famílias que os construíram. Alguns, como o Rezzonico, são museus; alguns, como o Labia[1], foram restaurados e ocupados por estrangeiros; a maioria é dividida em apartamentos. Os dois principais hotéis construíram novas alas discretamente feias. Você encontrará resmungões dizendo que Veneza não é mais a mesma. Não acredite neles.
Nesta minha última visita, vim pela primeira vez em janeiro, quando é ‘fora de temporada’ para estrangeiros e os próprios venezianos se sentem mais à vontade. Estava frio, úmido e enevoado e eu vi a cidade em um novo aspecto; um de melancolia poética e mistério. Não é essencialmente uma cidade de verão. A maioria de seus festivais ocorrem no inverno. Nos grandes dias da república, os nobres costumavam retirar-se de seus enormes salões com afrescos e passar o frio confortavelmente nos apartamentos mezaninos. Em julho e agosto, eles se mudavam para vilas ao longo do Canal Brenta e para as colinas. Ninguém que pudesse se dar ao luxo de ir embora passava o verão em Veneza. Essa é uma mania americana que começou no meu tempo. Primavera é uma estação requintada, mas, infelizmente, muito popular. Eu preferi me molhar nas ruas e achar muito dos quadros um tanto obscuros (apenas dois prédios introduziram iluminação moderna) do que ficar no meio da multidão.
Nunca acredite em ninguém que lhe diga que ‘conhece’ Veneza. Você pode ‘fazê-la’ em menos de um mês, estudando e aproveitando tudo o que os guias recomendam. E isso é ao mesmo tempo uma educação e um arrebatamento. Mas os próprios venezianos são os últimos a afirmar que ‘conhecem’ sua cidade. Ela está dividida em seis áreas, cujos limites são extremamente confusos, e ainda hoje, segundo me disseram, há venezianos que nunca saíram de seu próprio sestiere[1]. Cada igreja, cada fonte, é o centro de uma comunidade distinta.
Como se pode dar uma descrição dos venezianos? Talvez sejam o que os romanos foram entre 1815 e 1870. Mas há algo de oriental na modéstia das mulheres e na gravidade dos homens. Ela, que há 200 anos era a cidade do jogo e do carnaval, é agora, exceto a Espanha, o ápice do decoro. Não há demonstrações de carinho em público, nem brigas ou roupas chamativas; retraída, mas ainda tradicionalmente cosmopolita.
Fui tomar chá em um dos poucos palácios ainda totalmente ocupados pela família original — uma que não tem apenas magistrados da república, mas um santo canonizado em sua linhagem. Meia dúzia de nós estava lá no salão alto com afrescos. Porque eu era inglês, todos falavam no meu idioma, de forma fácil, coloquial, alusiva, quase sem sotaque. Eles compararam T. S. Elliot e Anouilh[2] em seu tratamento de Thomas à Becket; falavam das raças de gado inglês. Ninguém ali passara mais de uma ou duas semanas na Inglaterra. Era uma facilidade com o mundo tal como se encontrava e já não se encontra em Paris; e esta é uma cidade sem corpo diplomático, uma cidade provinciana comparável, suponho, em importância financeira e política a Swansea[3].
Mais tarde, fui a outro meio visitar um jornalista local; um homem, suponho, não muito abastado. Encontramo-nos em uma estátua e ele me conduziu por túneis e vielas — em Veneza não há bairro rico nem pobre — até chegarmos à sua casa, bastante monótona por fora; um departamento municipal inglês sem dúvida a condenaria à demolição; sob um arco, em direção a um pátio, e estávamos em uma arcada do século XV; e então subimos uma escada e estávamos em um quartinho delicado de gesso rococó do século XVIII, parecido com aqueles as sociedades de antiguidades na Inglaterra criam um alvoroço infrutífero quando estão condenados à destruição. Em Veneza eles existem em todos os lugares, fora de vista, incontáveis.
Os venezianos são o povo mais conservador da Europa e, por um estranho paradoxo, estão no momento privados de autogoverno por medo de se tornarem comunistas. Eles não têm um podestà[4], mas são governados por um prefeito enviado de Roma. Todos os seus funcionários públicos e a maior parte da polícia vêm de Nápoles e da Sicília. Eles se cansaram da política no final do século XVIII. Desde então, eles foram governados por franceses, austríacos, piemonteses. Eles são muito sábios e experientes para se preocupar. Mas eles protegem sua própria cidade ferozmente.
Há dois anos havia um terreno para erguer uma casa ‘moderna’, projetada pelo americano Wright[5], no Grande Canal. Os oficiais napolitanos deram seu consentimento. Então os venezianos e seus amigos estrangeiros perceberam o perigo e a coisa parou. Há apenas um prédio feio em Veneza hoje – o campanário de São Marcos. Ele permaneceu lá, desafiando a proporção e a elegância por 500 anos. Em 1902, entrou em colapso. Uma oportunidade enviada do céu, pode-se dizer, para limpar a coisa. De jeito nenhum; os venezianos construíram pacientemente uma réplica exata.
O atual Papa era Patriarca de Veneza antes de sua eleição[6]. Os venezianos estão orgulhosos e satisfeitos; satisfeito especialmente porque havia rumores de que ele tinha projetos para demolir a tela de Sansovino[7] em São Marcos. ‘Ele teve que ir, é claro’, dizem eles, ‘mas ele era um bom homem, então o mandamos para Roma.’
E, no entanto, eles não ousam ter uma eleição em Veneza por medo de se tornarem comunistas. A razão é irônica e significativa. Mussolini e seu ministro das Finanças fizeram um grande esforço para restaurar a prosperidade de Veneza. Em Mestre e Marghera[8], no continente, eles criaram subúrbios industriais que seriam a glória do regime fascista. Eles, é claro, se tornaram comunistas convictos. Mas os venezianos ainda se refugiam deles em suas próprias ilhas, e os cavalos de Lísipo[9] olham para baixo do pórtico de São Marcos nem um pouco surpresos ou alarmados com o que vêem.
Mas a cidade está afundando. Todos os anos, por alguns centímetros, ele afunda em sua lagoa. Não no meu tempo nem, rezo, no dos meus filhos, mas um dia desaparecerá silenciosamente. Com ele irá a última glória da Europa. Espero que ainda haja alguém vivo para lembrar as linhas agora banais de Wordsworth: ‘E quando ela tomou para si um marido, ela deve desposar o mar eterno.’[10]
Daily Mail, 30 de março de 1960.
[1] São
divisões de algumas cidades italianas. Em Veneza, são seis bairros do centro
histórico.
[3] Segunda maior cidade do País de Gales.
[4] Título italiano que significa autoridade ou poder.
[5] Frank Lloyd Wright (1867-1959), arquiteto americano.
[6] Ele refere-se ao Papa João XXIII, que foi Patriarca de Veneza entre 1953 e 1958.
[7] Jacopo Sansovino (1486-1570), arquiteto e escultor da República de Veneza.
[8] Localidades da parte continental de Veneza.
[9] Os Cavalos de São Marcos, também conhecidos como Cavalos de bronze de Constantino, são quatro estátuas de cavalos em bronze, formando uma quadriga, feitas no século IV a.C. e atribuídas ao escultor grego Lísipo. Elas se encontram na Basílica de São Marcos.
[10] Versos do soneto On the Extinction of the Venetian Republic, de William Wordsworth (1770-1850).
Ronaldo B. Giovannetti
É advogado em São Paulo, tradutor e criador da página WAUGH IN PORTUGUESE, dedicada a textos de não-ficção inéditos em português de Evelyn Waugh: https://medium.com/@waughinportuguese.