Desde muito tempo, o imaginário feminino representado na literatura era estritamente escrito por homens. No fim do século XVIII, inicia-se um movimento de escritoras como Jane Austen e as irmãs Brontë em escrever o amor na visão da mulher, ainda que com um codinome masculino e se colocando nesse mesmo lugar exclusivo do amor:

 

O resultado desse reino masculino de intelecto seria um perpétuo aprisionamento das mulheres em suas casas, com a esfera doméstica. Mulheres seriam para sempre o ativo de troca para os homens. A única saída que as mulheres tinham encontrado até aquele momento era a mímica […] (PINHO, 2011)

 

Um século depois surgiriam escritoras que realmente começaram a escrever sobre mulheres. Obviamente não seria uma ideia mais elaborada da mulher. Nessa pesquisa, as referências principais são mulheres brancas e de classe média dos Estados Unidos e Europa, o que impede de observar esse fenômeno da saúde mental feminina globalmente. As mulheres escritas e descritas por essas autoras, com todas as suas ressalvas, são complexas, confusas e com seus próprios dilemas mentais, saindo da ideia de feminilidade frágil e ingênua, para uma difícil análise de mundo. É importante entender as diversas lutas feministas para compreender o presente e o lugar que a mulher ocupa, em suas diversas subjetividades, sendo a literatura uma ferramenta essencial para esse recorte de um certo período histórico.

Um dos primeiros livros desse período que trataria exatamente sobre a escrita feminina foi o livro A Room of One’s Own (Um Teto Todo Seu na tradução para o português) de Virginia Woolf. O livro é escrito com várias entradas de um diário da autora; uma forma de ensaio, gênero muito explorado por ela. Nele, Woolf se questiona sobre a dificuldade de uma mulher escrever ficção. Afirma que quando uma mulher se propõe a escrever logo percebe que não existe uma frase dela, e sim uma pré-moldada por homens ao longo da história: “Ela teria que achar um jeito de sair da comodidade do status imposto sobre ela e descobrir um espaço propício para emergir sua própria voz.” (PINHO, 2011).

Virginia Woolf escreve esse livro após a Primeira Guerra Mundial e marca a narrativa deste ensaio com as comparações do pré e pós-guerra:

 

Antes da guerra, em um almoço como aquele, as pessoas teriam dito exatamente as mesmas coisas, mas elas soariam de outro modo, porque naqueles dias seriam acompanhadas por uma espécie de zumbido, não articulado, mas musical, empolgante, que alteraria o próprio significado das palavras.  (WOOLF, 2021- p. 23)

Assim como Woolf, Sylvia Plath, escritora norte-americana, vivia em um momento pós-guerra quando iniciou a sua escrita profissionalmente. Em seus diários, que se iniciam em 1952, Plath retoma e repensa esse tema recorrentemente. Como a guerra teria afetado essas duas autoras tão profundamente se, supostamente, não era lugar da mulher analisar completamente a guerra e seus horrores, apenas se preocupar em cuidar de seus filhos e temer pelos seus maridos que estavam lutando pelo país? Essas escritoras deram voz às experiências individuais e coletivas das mulheres, com foco na crítica, na esperança por um futuro melhor. Com os seus relatos, elas ofereceram pensamentos profundos sobre a saúde mental durante esses períodos turbulentos, surgindo assim, clássicos da literatura:

 

Pois os Estados Unidos fizeram isso. Culpa nossa. Meu país. Não, nunca mais. E depois a gente lê nos jornais “Segunda Explosão de bomba em Nevada foi maior do que a primeira!” Que obsessão tem o homem pela destruição e matança? Por que eletrocutamos sujeitos por matar uma pessoa e depois pregamos uma medalha de honra em quem cometeu assassinato em massa contra sujeitos arbitrariamente rotulados de “inimigos”? (PLATH, 2017 – p. 62)

Sylvia e Virgínia eram de famílias de classe média. Ambas tiveram incentivo literário dentro de casa e conseguiram ir para faculdades importantes em seus respectivos países. Esse ponto é imprescindível para entender a posição que ocupavam nesse período histórico e como tiveram “um teto todo seu” para desenvolverem sua escrita. Virgínia tinha um grande apoio de seu marido Leonard Woolf, assim como Sylvia, casada com Ted Hughes.

Entretanto, na literatura de Plath, fica explícito, enquanto jovem, o medo do casamento e, nos seus últimos poemas, o ódio pela traição cometida pelo marido. Percebe-se, então, que, mesmo as autoras tendo conquistado essa liberdade em seus trabalhos, o tema volta ao lar:

 

Claro, o casamento é uma forma de expressão pessoal, mas minha arte, minha escrita, não pode ser mera sublimação de meus desejos sexuais, que fenecerá assim que eu me casar. Ah, se eu pudesse encontrá-lo… O homem que fosse inteligente e ao mesmo tempo dotado de magnetismo pessoal, fisicamente atraente. Se eu posso oferecer tal combinação, por que não esperá-la num homem? (PLATH, 2017 – p.34)

       

Focando na literatura de Sylvia Plath, dentre todas as suas obras, o tema da morte é recorrente, diferentemente de Woolf, que escreveu sobre esse tópico no final de sua vida. Plath, com todos os privilégios, perdeu seu pai muito cedo, o que iniciou o desenvolvimento de uma depressão que duraria ao longo da vida. Esse acontecimento é muito articulado em seus poemas a partir do livro Ariel, sendo o mais famoso “Daddy” (“Papai”, em português):

Tinha dez anos quando o enterraram.                                                                                 

E aos vinte tentei morrer

E voltar, voltar, voltar para você.

Achei que até os ossos iam querer 

(PLATH, 2018 – p. 153)

Neste mesmo livro, Sylvia aborda diversos outros temas que são recorrentes na vida da mulher: insegurança após a gravidez (Talidomida), a felicidade de ter um filho (Canção da Manhã), lembranças de sua infância (Corte), ápices de suas tendências suicidas (Lady Lazarus), lugar da mulher como cuidadora do lar (O Candidato), entre muitos outros que compõem sua seleção original. A coletânea de poemas neste livro é de vários períodos de sua vida, sendo o principal quando se separou de Ted Hughes, por causa de uma traição. Em cartas a sua psiquiatra, Sylvia conta o que passou ao lado de Ted nos seus últimos anos de vida: “Ted me violentou fisicamente alguns dias antes do meu aborto espontâneo: o bebê que perdi estava para nascer no aniversário de Ted.” (Tradução nossa)

Nas suas outras obras, A Redoma de Vidro, Mary Ventura e o Nono Reino e em seus diários, Sylvia explora o fluxo de consciência, gênero literário que aparece em quase todas as obras de Virgínia Woolf. Essas obras contam mais sobre a juventude de Plath e demonstram essa fixação com a morte, além de ser extremamente consciente da sua existência e seu lugar no mundo:

Sou apenas uma gota a mais no imenso mar de matéria, definida, com a capacidade de perceber minha existência. Entre os milhões, ao nascer eu também era tudo, potencialmente. Eu também fui cerceada, bloqueada, deformada por meu ambiente, pela manifestação da hereditariedade. Eu também arranjarei um conjunto de crenças, de padrões pelos quais viverei, e no entanto a própria satisfação de encontrá-los será manchada pelo fato de que terei atingido o ápice em matéria de vida superficial, bidimensional – um conjunto de valores (…) –  (PLATH, 2017 – p. 45)

Percebe-se aqui a inserção de teorias feministas que seriam evidentes na década seguinte, com Angela Davis, na onda do movimento negro nos Estados Unidos. A ideia de interseccionalidade entre raça, classe e gênero é importante para analisar os textos dessas autoras aqui estudadas. Sylvia entende sua condição no mundo como mulher, e sabe que isso interfere em seu potencial na sociedade.

[…] de modo que a ideia que se tem de mulher não abarca todas as mulheres,mas apenas uma parte delas, a saber, a parte privilegiada, portanto, este não pode ser o discurso que se use para a causa das mulheres; […] daí se vê a importância, dentro do movimento sufragista feminino, de se pensar a respeito de que mulher se está falando, quem é a mulher que este discurso está defendendo? (FREIRE, 2019)

Virgínia também apresenta essa ânsia pela liberdade em seu romance, Mrs Dalloway, considerado sua obra prima, mas a necessidade de uma conformidade social impede a personagem Clarisse de realizar essa vontade. Além disso, Woolf explora a importância da existência no mundo, relacionando com a filosofia absurdista e niilista:

Mas recordar, todos recordam; o que ela amava era isto, aqui, agora, na sua frente; a senhora gorda no carro. Importava então, indagava consigo, encaminhando-se para Bond Street, importava mesmo que tivesse de desaparecer um dia, inevitavelmente? Tudo aquilo continuava sem ela. Sentia-o? Ou seria um consolo pensar que a morte acabava com tudo, absolutamente? (WOOLF, 1980- p.12)

A questão feminina nos livros foi evoluindo desde esse momento. Muitas autoras surgiram, mudaram o curso da literatura com novas teorias ou apenas narrativas que inspiraram um futuro mais aberto a mulheres. Observa-se hoje diversas mulheres, não mais apenas escolarizadas da elite europeia, mas africanas, latinas e asiáticas, cada uma com as suas dificuldades em serem reconhecidas, mesmo assim conseguem mostrar suas histórias. Algumas perpetuam o mesmo tipo de personagem que Sylvia escrevia: presa em sua própria mente, com os seus dilemas internos e tratada como louca pela sociedade. Uma dessas autoras é Andréa Del Fuego, brasileira que ficou conhecida por sua obra A Pediatra. Também pode-se falar de outras autoras brasileiras do mesmo período em que Plath viveu, como Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector ou Raquel de Queiroz, que mostravam as contradições da mulher em diversos espaços e realidades.

Entende-se, portanto, que a mulher ainda é atrelada às suas relações com homens em sua vida. Assim como qualquer outro indivíduo, temos afeto por outras pessoas, porém é perceptível que para esses dois exemplos aqui estudados, esse pedaço da “feminilidade” fica vulnerável. Ambas foram extremamente afetadas pelo mundo à sua volta e deixaram isso explícito em suas obras, diferentemente das primeiras escritoras mulheres que colocavam as críticas como algo mais subjetivo. Woolf e Plath encabeçaram teorias essenciais para o entendimento da mulher, especialmente branca, naquele momento e, ainda assim, conseguiram iniciar pensamentos importantes para os futuros feminismos interseccionais que apareceriam na década de 1960.

Plath e Woolf conseguem capturar a complexidade e a angústia da psique feminina. As suas narrativas desafiaram o que eram as noções tradicionais de gênero naquele período, sendo Orlando um livro emblemático de Virginia sobre esse assunto, e mostraram a importância de dar voz às experiências femininas. Elas evidenciaram, por causa de suas mortes trágicas, a importância em tratar e apoiar a saúde mental das mulheres, algo que vem sendo gradativamente conquistado.

Foto de Sophia Nascimento

Sophia Nascimento

Estudante e pesquisadora da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, dedica seu trabalho a Estudos Literários, com enfoque nas obras que representam a vivência feminina.

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