Saio de casa com a mesma disposição com que volto a ela, tardio, sonâmbulo, as pernas, os braços, o semblante que carrego no rosto, na rua. Enquanto o pensamento pinta um mundo longe, distante das pernas, braços e semblantes que carrego e que outras pessoas sonâmbulas ou não, também carregam, passo por elas e elas passam por mim.

Chego, entro na cafeteria, onde vez ou outra arrisco rabiscos, letras sobre alguns pedaços de papel que levo no bolso. Peço um café e volto meu olhar junto com o meu pensamento para o outro lado da rua, onde existe um terreno baldio, que já, há algum tempo, nutre o crescimento de um matagal. A diferença é que hoje o terreno baldio está ocupado por um homem, uma variável, um homem está a carpir o terreno. É um homem que aparenta ter a mesma idade que eu ou próxima, ele desfere um golpe atrás do outro sobre a terra do terreno baldio, arrancando o mato, a terra e as raízes do problema.

Chega meu café, ele está quente, honesto ao que se propõe, puxo um pedaço de papel do bolso e começo a comprometê-lo com palavras. Entre o tempo de uma enxadada e outra do outro lado da rua, de uma palavra e outra sobre o pedaço de papel do meu lado, o café alcança a temperatura desejável e eu o bebo.

Eu que tenho sonhado tanto, que tenho enchido pedaços de papel com palavras, eu que só sujo, corrompo, abstraio, poluo, admiro a vontade do homem que capina, de repente durante uma de suas breves pausas ele me vê, fitando-o e escrevendo no papel, penso que, talvez, ele tenha se interessado pelo que escrevo, penso que talvez, assim como eu imaginei, o que ele pensava enquanto carpia, ele tenha imaginado o que um homem escreve enquanto toma café.

Ao sair da cafeteria, atravessei a rua e fui ter com o homem que capinava, e lhe perguntei se ele se importaria de escutar o que eu havia escrito, ele consentiu com a cabeça e parou por alguns segundos sua enxada. Li três versos dispersos sobre a metafísica, algo sobre desejos e potência. Ele me olhou com um olhar de indiferença e com pouca coisa a mais que indisposição me disse:

– Que falta faz ter um terreno para carpir, a humanidade já passou da conta.

Ele continuou carpindo, eu fui embora e em casa continuei a escrever, sobre homens que sujam folhas, com homens que carpem terrenos.

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William Pardo

William Pardo nasceu em Franca-SP, no dia 14 de dezembro de 1984. Professor Coordenador em escola pública. Formado em Educação Física. Especializou-se em Filosofia e Sociologia.

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