A MORTE E A MORTE DE RÉGIS BONVICINO
(Ou: “Quero ver o que permanece” [RB])
Há uma velha historieta sobre o menino e o lobo, que é uma das velhas historietas sobre o menino e o lobo, mas não aquela que mais comumente se recorda. Nessa, um velho cansado, cansado de acordar quase toda noite pelo balido abalado de suas ovelhas, salta sobressaltado da velha cama quase toda noite, pela provável possibilidade de ser um ataque de lobo. Na maior parte das vezes, no entanto, é apenas o balido baldado de ovelhas asininamente assustadas. Nenhum lobo, nenhum sono. Mais uma noite desnecessária de insônia, mais um dia de ociosa fadiga. Então, insone, o velho tem uma ideia: comprar um apito. E contratar um menino para soprar o apito quando um lobo aparecesse. O velho saltaria para fora do sonho, do sono e da cama com sua espingarda na mão, assustaria ou mataria o lobo e voltaria ao sono dos velhos justos e justificados.
Assim fez. Comprou o apito, contratou o menino e lhe deu o apito e a instrução de soprá-lo quando o lobo aparecesse. E foi para a cama. E adormeceu profundamente. E acordou abruptamente, quando o apito, estridente, de repente soou. O velho saiu esbaforido da cama, do quarto e da casa, espingarda em punho, gritando: “Onde está o lobo? Onde está…”. E viu o menino parado de pé com cara de bobo, apito pendendo da boca, e as ovelhas paradas calmas atrás dele, com seu olhar de tranquila idiotia. “O lobo não veio… Apitei para ver se funciona…”.
O resto da noite foi tranquilo. O dia seguinte também. Então veio a segunda noite. E pela segunda vez o apito soou. E pela segunda vez não havia lobo. “Apitei para confirmar…”. Então veio a terceira noite. E pela terceira vez o apito soou. O velho abriu os olhos, virou de lado, ajeitou o cobertor e resmungou: “Maldito menino. Vou enfiar esse apito no seu ouvido”. E voltou a dormir.
Dessa vez era verdade. O lobo estava lá. E devorou todas as ovelhas, o menino e o apito.
A historieta serve à mais absoluta perfeição como parábola da tantas vezes anunciada morte da poesia em geral e da poesia brasileira em particular. O reiterado anúncio dessa morte é o apito. A morte real é o lobo. Esse lobo nunca apareceu. Até agora.
Agora que está aqui, as ovelhas sonsas da poesia, da literatura e da intelligentsia brasílica continuarão com seus balidos bobos e sua estupidez bovina. O lobo da morte da poesia brasileira é a morte de Régis Bonvicino.
A poesia brasileira morreu, afinal. E isto não é uma opinião. Quando morre o último falante de uma língua moribunda, essa língua é decretada morta. Quando morre o último praticante de um ofício antigo, esse ofício é declarado morto. Quando morre o último artista de uma arte, de uma linguagem, ela deve ter sua morte anunciada.
“Ah”, balirá o rebanho, “mas há tantos e tantas e tantes poetas e tanta poesia…”. Por isso. Tantos e tantas e tantes e, no entanto, nenhum, nenhuma e nenhume realmente relevantes. O tamanho da massa de poetas e poemas irrelevantes marca, afirma, confirma, destaca e agiganta sua irrelevância.
Portanto, devo aqui me corrigir: a poesia brasileira, conforme tantas vezes anunciado, morreu há tempos. Seu cadáver insepulto atendia pelo nome de suprema irrelevância. Logo, o que morre agora é a suprema irrelevância da poesia brasileira contemporânea.
Régis Bonvicino, assim, prestou três serviços ingentes à pobre poesia brasileira. O primeiro foi sua obra. O segundo foi manter a poesia brasileira moribunda enquanto estava vivo, pois um corpo com ao menos uma célula viva não está inteiramente morto. O terceiro foi matar, agora, a irrelevância zumbi dessa poesia.
Régis morreu de uma queda. Poeta até o derradeiro fim, morreu de uma metáfora.
✝︎
Morreram Régis Bonvicino, a poesia brasileira contemporânea e sua irrelevância. Descansem em paz – se puderem. Pois ainda piores do que as daquele pobre velhote insone, as ovelhas do imenso rebanho da mesma poesia brasileira nunca param, mortas-vivas, de pastar e de balir. Existir, para elas, é balir e pastar, pastar e balir, balir e balir. Não fazem outra coisa, não sabem fazer outra coisa e não podem fazer outra coisa. Para cunhar uma frase, durma-se com um barulho desses. Para usar outras frases menos usuais: “Carregadores de comida, produtores de esterco, enchedores de latrinas: assim devem ser chamados. Deles nada mais emerge no mundo, nada além de latrinas repletas permanece”.

Luis Dolhnikoff
Luis Dolhnikoff estudou medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Folha de S. Paulo, Sibila e TriploV (Portugal). Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Tem textos publicados nas principais revistas literárias brasileiras, impressas e eletrônicas, além de Tsé=tsé 7/8 (número especial com 30 poetas brasileiros contemporâneos), Buenos Aires, outono 2000; Hipnerotomaquia, Cidade do México, Aldus, 2001; Ratapallax 11, New York, spring 2004; Mandorla – New writing from Américas 8, Illinois State University, 2005. É autor dos livros de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992) e Depois do sol (no prelo), além dos livros de poemas Pãnico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009) e As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016), Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020) e O fim do mundo ocidental (no prelo). Traduziu Arquíloco (Fragmentos – São Paulo, Expressão, 1987, ed. bilíngue), James Joyce (Poemas: Chamber music – São Paulo, Olavobrás, 1992, ed. bliíngue), Allen Ginsberg (Uivo – São Paulo, Globo, 2012, texto integral) e A Torá (São Paulo, União do Judaísmo Progressista da América Latina, 2021, texto integral).