Quando morreu R.G.J., o mais importante escritor do país, a viúva doou toda a biblioteca do romancista a uma conceituada universidade, cumprindo a vontade do marido. Grande fã do autor e estudante de doutorado da mesma instituição, T.H.C. viu naquela conjunção dos astros um excelente objeto de pesquisa. Já tinha iniciado uma análise do último romance de R.G.J., mas aquela trama de eventos lhe inspirou uma mudança de rota. Decidiu explorar a grande coleção de livros doados à sua universidade.
 
Folheando ao acaso alguns volumes, T.H.C. apercebeu-se de que R.G.J. sublinhava trechos das obras com lápis de cores diferentes: azul-marinho, vermelho-sangue, verde-musgo e amarelo-canário. Linhas muito retas, sem dúvida traçadas à régua. Fascinado com a descoberta, T.H.C. decidiu transformá-la em seu objeto de tese. Optou por um gênero literário, o biográfico, seu favorito, e por uma língua, o francês, que T.H.C. lia com imodesta desenvoltura. Sua tese analisaria e explicaria o sistema de cores de R.G.J.: que sentimentos absconsos, que observações perspicazes, que impressões no espírito, que segredo enfim se escondia por trás das escolhas das cores?
 
T.H.C. entregou-se à pesquisa com todas as ganas de seu ser. Chegava à biblioteca minutos antes de abrir e só se retirava minutos antes de fechar. Eram cinquenta biografias ao todo, das mais diversas personalidades: escritores, filósofos, cientistas, políticos, artistas de todas as áreas… Aos poucos, T.H.C. foi identificando o que estava por trás das marcas coloridas com que R.G.J. destacava passagens de cada obra.
 
Ao fim de tanto empenho, de quanto longos anos em que emagreceu perigosamente, T.H.C. chegou, emocionado, às conclusões. O azul-marinho indicava a surpresa de R.G.J. diante de fatos da vida do biografado que contradiziam a narrativa canônica, tradicional. O vermelho-sangue representava as discordâncias de R.G.J. para com o autor da biografia, que subestimava episódios importantes ou enaltecia acontecimentos de todo banais. Com verde-musgo R.G.J. evidenciava sua crítica aos lugares-comuns e falta de estilo do biógrafo. Por fim, o amarelo-canário aplaudia o estilo e a qualidade de escrita da obra.
 
T.H.C. produziu então uma tese de quinhentas páginas, que teve de ser dividida em dois volumes para facilitar a leitura da banca. A defesa durou oito horas, todos os arguidores manifestaram sua admiração (e mal disfarçada inveja) pela sagacidade de T.H.C., que recebeu a menção “summa cum laude” acrescida da injunção de publicar o quanto antes aquela obra-prima dos estudos literários.
 
E publicou. O sucesso no universo das letras foi imediato: os cem exemplares impressos esgotaram-se em poucos meses, e T.H.C. tornou-se uma celebridade no exíguo círculo dos críticos literários, convidado a pontificar em universidades nacionais e estrangeiras.
 
Mas T.H.C. não sabia que, enquanto degustava sua gloríola, os astros se arranjavam para produzir nova urdidura do destino.
 
Sem nunca ter conseguido entender por que R.G.J. era tão incensado, pois o julgava medíocre, a jornalista L.S.D. resolveu investigar a correspondência do romancista. Muito tempo atrás, correra à boca pequena o boato de que, já casado com a mulher ao lado de quem viveria cinquenta anos, R.G.J. tivera uma experiência digamos afetiva com um jovem tradutor de sua obra para o francês (ah, as coincidências da vida!). O mexerico não prosperou, porque a monumentalidade da fama do romancista bastou para esmagar o verme do diz-que-diz antes que começasse a se arrastar pela lama do vilipêndio.
 
A experiente L.S.D. queria investigar a veracidade daqueles rumores, decidida, como qualquer jornalista que se preze, a levantar o véu de sacralidade e espiar se debaixo dele não pulsava algum laivo de impudicícia. As cartas de R.G.J. também estavam disponíveis para consulta na biblioteca da universidade, devidamente catalogadas e micofilmadas.
L.S.D. foi à biblioteca e não tardou a encontrar o que desejava. Num microfilme aparecia um cartão-postal do jovem tradutor ao romancista (a foto de um campo de lavanda na Provença) em que ela pôde ler (escrita, por óbvio, em francês, língua que L.S.D. lia com arrogante desembaraço): “Querido Jojô, adorei a biografia de Voltaire em alemão que me emprestaste, muito me diverti com ela. Não admira que tenha sido tão detratada na França! Envio-ta de volta junto com este cartão. Mas não tive como deixar de reparar que tu sublinhas com cores diferentes algumas passagens da obra. Quer isso significar alguma coisa? Teu Mimi” (tradução nossa).
 
Não era muito para seus objetivos. Mas L.S.D. era uma investigadora de primeira classe, não ia desistir tão fácil. Por uma dessas inspirações que só uma teologia rasa consiga talvez explicar, L.S.D. foi às estantes da biblioteca. Buscou a mencionada biografia de Voltaire em alemão. Por quê? Nem ela mesma sabia ao certo. Achou.
 
Trouxe o livro para a mesa. Começou a folheá-lo sem objetivo definido, até que no meio das páginas apareceu o cartão-postal que L.S.D. já tinha visto em microfilme. Continuou a folhear o livro até que, na última guarda (imagino que nossos leitores sejam versados em técnicas de encadernação) topou com algo rabiscado em letra pequena, de leve, quase ilegível, a lápis (preto) e em seguida cancelado com um X que cobria todo o pequeno texto. Era obviamente um rascunho. Estava em português.
 
L.S.D., com alguma dificuldade, conseguiu decifrar: “Mon petit bijou, muito me agrada que tenhas apreciado o livro. Quanto às cores, a explicação é banal. Sempre tenho sobre a mesa lápis de cores diferentes. Quando quero sublinhar algum trecho, apanho o que estiver mais à mão e uso-o. Não imaginas a falta que sinto de nossas f* e de te ver diligentemente ch* o meu p*” (por respeito às nossas leitoras mais decorosas, optamos por omitir termos chulos que poderiam ofender suas sensibilidades). Mais feliz que a felicidade, L.S.D. fotografou o cartão-postal e a página de guarda do livro.
 
No dia seguinte, para escândalo nacional e internacional, o jornal de L.S.D. publicava, em primeira página, os achados da jornalista.
 
Na noite do mesmo dia, T.H.C. foi encontrado morto sob um viaduto. O laudo do legista concluiu por suicídio.
Foto de Marcos Bagno

Marcos Bagno

Marcos Bagno é um linguista e escritor brasileiro. Ele nasceu em 21 de agosto de 1961, em Cataguases, no estado de Minas Gerais. Mais tarde, fez faculdade de Letras e mestrado em Linguística na Universidade Federal de Pernambuco, além de concluir o doutorado em Filologia pela Universidade de São Paulo. Professor da Universidade de Brasília, Bagno é autor de livros infantis e juvenis, além de obras de caráter sociolinguístico. Seu livro mais famoso é Preconceito linguístico, no qual o autor evidencia a relação entre língua e política. E mostra que o preconceito linguístico está associado a um preconceito de classe.

Livro Preconceito Linguístico
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