Conheci Régis Bonvicino graças a Bóris Schnaiderman, ainda nos anos de 1990, quando ele cursava pós-graduação com o tradutor russo. Bóris me disse que o considerava o maior poeta brasileiro do momento. Passei a ler seus poemas e, de fato, o que me impressionou foi a contundência de sua dicção e a precisão de seu ataque contra a destruição da civilidade e do sentido de cidadania.
Tive ocasiões de escrever alguns artigos e introduções a algumas de suas obras:
- O anverso-adjacente – sobre a obra do poeta Régis Bonvicino, para a Revista Et cetera, de Curitiba, p. 96 – 98, 20 mar. 2004.
- Em 2007, uma introdução ao seu Página Órfã, que ele lançou pela editora Martins Fontes.
- Em 2010, uma introdução ao seu Até Agora, que saiu pela Imprensa Oficial.
- Resenha: Até agora firma relevância de Bonvicino in Folha de S. Paulo Caderno Folha Ilustrada , p. E10 25 de dezembro de 2010.
- Crítica: “Coerente, poeta Régis Bonvicino recria cotidiano em colapso”. Folha de São Paulo – Ilustrada, São Paulo – SP, p. e7 – e7, 07 out. 2013.
Com o correr dos anos, passei a colaborar com a Revista Sibila, que ele dirigia junto com Charles Bernstein desde 2000. A revista contou com colaboradores brasileiros e internacionais como Alfonso Bernardinelli, Marjorie Perloff, Jerome Rothenberg, para citar apenas alguns, e uma plêiade de autores latino-americanos que ajudou a alavancar como são os casos de Néstor Perlongher e Wilson Bueno. Com os anos a Sibila formou um arquivo dos mais variados e invejados que, à diferença do que ocorreu recentemente com o do poeta concretista Haroldo de Campo, para a sorte dos interessados, está em formato virtual e não pode portanto ser trancafiado em algum depósito remoto, o que não deixa de ser uma garantia em tempos…
Alguns dias antes de partir para a Itália, havia me contado que depois de uma queda aqui mesmo, em São Paulo (hipotensão?), foi acometido por uma crise respiratória: “Quase morri!”, disse-me ele.
Conviemos ambos que era importante (“em Roma”, disse ele) respirar o eterno, estava cansado do efêmero. Ninguém poderia ter imaginado que seu passamento ocorreria de forma tão antecipada.
Sua última postagem (28 de junho de 2025) na página do Facebook que ele esporadicamente movimentava foi esta figura, que ele fotografou na Villa Borghese, em Roma.
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Seleção de estudos de Aurora Bernardini sobre a obra de Régis Bonvicino
Introdução ao Estado Crítico, Editora Hedra, 2013.
Tudo, neste último livro de Régis Bonvicino é extremamente esmerado. Desde o invólucro – a impressionante imagem da capa, do cubano Raoul Sentenat, mimando o título e o sintomático poema homônimo, um ponto alto do livro – , a orelha de Alcir Pécora, já em si uma chave de leitura, a quarta capa do percuciente Charles Bernstein, prenunciando aos leitores os poemas “ requintados, oblíquos e estranhamente prescientes em sua luta feroz com a vida”, até a matéria do corpus, duro e coerente consigo mesmo, até o fim.
Tirante o breve trilíngue Blue Tile, publicado em Hong Kong em 2011 onde, entre inéditos, já se conjuga o verbo amar do “Poema Sério”, presente em Estado Crítico e quintessência do humor arguto e cáustico de Régis, esta é a primeira coletânea do poeta que se segue à reunião de sua obra Até agora, publicada em 2010.
Sua coerência poética afunda nas dobras do quotidiano em colapso, na “era do capitalismo terminal” como o define Bernstein. Aqui e acolá – os flashes do “ flaneur” varrem o mundo – esse quotidiano é revirado, esfaqueado, salgado, exposto ao vento, meio cadáver, meio lixo, para a degustação das gaivotas. O cachorro se debate, a onça-pintada morre, a ostra está em coma, o chafariz agoniza, o soldado urina, os dentes do príncipe estão podres, o gerânio se encarquilha, a borboleta sexy rosna. Só o lobo de pelúcia uiva. O quadro é implacável.
Haverá nessa destilação poética de projeção distópica, nesse mundo onde “ não há futuro mas apenas tempo ”, onde crítico é também o estado da poesia, algum respiro de vida que não seja estertor? Tal como o maciço de miosótis que “ ainda rompe as grades do parque”, o poema negativo que “denuncia a barbárie” respirará ainda , embora por aparelhos críticos?
Mesmo a coruja cantando para o rouxinol, o carro pegando no tranco, o tio se reencarnando num rato, o padre operário sendo metralhado pela tropa de Pinochet, a rua infectando a chuva, a dália-gigante sendo agora uma flor sem pétalas, ainda tolerará o mundo, o poema? “Na pasta de rascunhos/eis um poema/manhã de sol, outubro,/ florido/um bico-de-papagaio/ irrompe do muro/um bebê num carrinho,/dentro de uma carroça/ -ágil-/sobre aparas de papel,/arquivos mortos/puxada pelo pai,/ entre um fiat e um porsche,/ultrapassa veloz/” . Enquanto ainda vingar a infância, no absurdo e a natureza ainda sobreviver, no artificial, “ o resedá de casca lisa/lilás, florido/ no canteiro da pista./Num gesto abrupto, épico,/subjugando o plástico/” , ainda conseguirá agarrar os restos , parece dizer o poeta – aos que ainda esperam, ao menos.
Introdução ao Página órfã. Martins Fontes, São Paulo, 2007.
Esta nova coletânea ( 2004-2006) de Régis Bonvicino , desde a leitura dos primeiros poemas, regala-nos com uma grata sensação de organicidade. De fato, tudo vai se integrando aos poucos, numa grande tela, ao mesmo tempo tecida e pintada, numa grande “página órfã” de um livro que, hélas, é “imitação de vida”, um lugar/circunstância em que “ Jesus é um recurso abstrato”, Deus é útil no momento do espasmo e o pobre lobo guará (de Extinção , uma obra prima ) “dócil, sem astúcia,/é facilmente capturado e morto/por traficantes de pele/quando então uiva.”
– Escrever poesia hoje, sobre quê? – perguntava o autor num dos intervalos do congresso Poesia em tempo de guerra e banalidade, que organizou em 2006 com Alcir Pécora, seu interlocutor privilegiado ( a quem dedica o livro, aludindo à colaboração Zanzotto/Fellini?). A resposta é dada aqui: nesse tempo de guerra e banalidade cabe à poesia também , e talvez mais essencialmente, empenhar-se ( enfronhar-se, escavar) nas dobras aberrantes, mas tão dolorosamente reais, de nossa atualidade. Nada de idílico, portanto, tirante o poema inicial, à moda de master Creeley, que canta a mulher amada dos baixios de sua ingrata condição de poeta, afeito da “praga das palavras”.
As palavras que recorrem são as primeiras espias da organicidade com que é visto esse mundo desregrado, apodrecido, disparatado que ruma tão irremediavelmente para o inorgânico: lixo, mendigo, aranha, pomba, carcaça, descarga, tráfico, urina, muro, rato, sofá, canteiro, calçada, caveira, viaduto, cachorro, túnel.
No universo das palavras-carcaça, das quais fala João Adolfo Hansen no alentado posfácio, elas se encontram, nos momentos mais sintomáticos, amarradas a seu avesso, funcional ou lexical, numa “ contrafuga” aparente ou real: gaivota sem peixe ( Agonia), jacarandá sem folhas ( Cambio, exchange), formigas às avessas (Enésima potência), garrafa lançada contra o espelho( Manuscrito), Leminski/Kaetan(Letra), mendigo/rosto da modelo (Anúncio); flor nula da Coca Cola/fórmula (Morte); fedendo a mim mesmo/fedendo a expectativas (Caminho de hamster), floripondio/mendiga na igreja; pirâmides/camisetas(Grafites), maconha/colgate; dentes/pingentes( Roupoema), nunca e sempre ( Legendas do muro), tráfego/tráfico ( Ok, ok), sombra/cortina (De manhã), moradores/retirantes ( Moradores),mendigo/vira lata (Rotina), coruja/morcego (Petróglifo 3), dormir com medo de não dormir ( O sono)…
Ao mesmo tempo, numa outra camada, há uma recorrência sonora entre certas palavras que transforma distâncias em associações imediatas, aproximando, como costuma a poesia, vertiginosamente, o som e o sentido.
Vejam-se alguns exemplos curiosos. No poema It´s not looking great! onde o autor investe contra o modelo que, em nossa cultura, se tornaram as manequins, e que já começa com o alusivo kokein/keit, encontramos, num crescente, as associações: atéia/ateou fogo em sua carreira; boquete/ nos bosques; mosca/cosmopolita, etc.
No antológico Definitions of Brazil, escrito com seu parceiro Charles Bernstein, surpreendemo-nos com suas assonâncias“ snakes who ate kakes”; “ intoxicated syncopations”; “ the model of a model”; flying Down to Rio with Dolores del Rio, ou : Under the veneer of its vivacity, Brazil is violent, a vile viper playing a violet viola. Aliás, esse “ snakes who ate cakes” comparece também no poema Sem título dedicado ao colega russo Arkádii Dragomóshchenko – tradução livre de zmiei ediat znanie como “cobras devoram tortas”.
Mas , o caminho que parte de um sentido para outro sentido contíguo com o qual se amálgama, privilegiando a percepção mental, agora já não mais visando o sensorial, também é marcante em poemas como Concerto ( onde todos os sentidos são convocados para uma conceituação final), Duas Linhas (onde, numa acabrunhante sarabanda que quebra os tímpanos de “mulas”disfarçadas de manequins , no fim, um soldado entra no quarto). Num outro quarto, no poema seguinte ( Música), há prisioneiros de guerra árabes de soldados americanos, submetidos a outra sarabanda: “Te estrangulei até a morte,/depois quebrei tuas pernas”/) etc.
Falou-se em “telas” , pois, de fato, as artes plásticas também têm parte ativa na composição dos poemas de Régis. Em De manhã é criada uma ambiência espacial ( na pista do viaduto aqui embaixo) habitada pelos mendigos. A ambiência é mobiliada com sofás brancos, creme (não de pátina, mas de tempo), fogão, escapamentos, objetos e sobras, sacos, vigas , armário sem fórmica, tudo organizado e varrido. Não é um fato solto. Em Moradores, o poema seguinte, a ambiência evolui para a ponta do túnel “onde há um canto,/pintado na parede/um detalhe de Retirantes de Candido/Portinari, óleo sobre concreto/sem lâmpada no teto/”…Isso, sem contar os ready-made e as colagens apontadas pelo posfaciador.
Essa continuidade, manifesta em tantos níveis, confere ao todo ( cinquenta e dois poemas) uma coesão não tão conspícua em obras anteriores do poeta. Mesmo os dois trechos em prosa nada têm de fragmentário e tanto menos de aleatório: as linhas são organizadas em verbetes( Vidro fumê), quando não numa grande definição ( por exclusão) do que um poema não é (Prosa).Como conclui Sérgio Medeiros (www. centopeia.net): “ O leitor vai achar que tanta agonia gera necessariamente um êxtase invertido, um êxtase às avessas. Achará que a precisão é o único consolo que nos resta – ver tudo nitidamente. Pelo menos isso. Mas descobrirá então uma enorme ironia e uma crítica feroz em tudo isso. Se sentirá desconfortável, no mínimo.”
Artigo “”Até Agora” firma relevância de Bonvicino”, para a Ilustrada – Folha de São Paulo, 25 de dezembro de 2010.
A coletânea reúne produção do autor entre 1975 e 2007 e o corrobora como o mais destacado poeta brasileiro de sua geração.
“Até Agora” reúne a produção de Régis Bonvicino, de 1975 a 2007. O volume começa com o livro mais recente, “Página Órfã”, uma coletânea clara e tocante, que se constitui no apogeu de seu trabalho nesses 32 anos. Traz, igualmente, um esclarecedor ensaio de João Adolfo Hansen, a fornecer chaves para sua leitura. Desfilam aí, retomando, nessa “Página Órfã”, imitação davida, morte, agonia, desperdício, lixo consentido, mendigo morto a pauladas, cacos de vidro, novo alfabeto, definições do Brasil, borboleta disfarçada e, uivando por/sobre todos, o lobo guará, extinto. “Remorsos do Cosmos”, de 2003, é menos frontal do que o seu sucessor: abre-se mais à interpretação do que a uma compreensão imediata. Antecipa, por seu turno, a “Página Órfã” nas invenções de linguagem, no tom áspero, na exploração do “junk space”, tão caro ao autor.
“ZONA DE SEGURANÇA”
A poesia de Bonvicino, desde “Bicho Papel” (1975), opera com a ideia de arte como desconsideração de uma “zona de segurança”. Em “Régis Hotel”, de 1978, aparece, de modo nítido, a inflexão social. Em “Sósia da Cópia” (1983), a poesia é vista como rival do real, beligerante, aproximando-se daquela que o autor chama de sua “antipoesia”. O tom ácido agora se alarga com o choque entre imaginário e o real aceito, dado. A parceria com a fala inglesa, que tanta in the Grass”, que, jogando com um possível original e sua tradução, põe em xeque a realidade das línguas, questionando-as, revelando-as como artifícios de controle. Não se pode deixar de mencionar “a lírica de rostinho colado à realidade”, de “Más Companhias” (1987). E a dupla “33 Poemas” (1990) e “Outros Poemas” (1993), sóbria e introspectiva, equilibrando mundo e linguagem. Bonvicino traduziu o argentino Oliverio Girondo (1891-1967) e os americanos Michael Palmer, Robert Creeley (1926-2005) e Charles Bernstein, entre 1994 e 2008. Diga-se que ele mesmo é responsável pela publicação de uma antologia de poetas brasileiros em inglês, a primeira de impacto, intitulada “Nothing the Sun Could Not Explain” (nada que o sol não poderia explicar). Aliás, esse internacionalismo, que se reafirma com a tradução de dez poetas chineses contemporâneos em “Um Barco Remenda o Mar”, parceria com o poeta chinês Yao Feng, é uma característica marcante de seu trabalho. Foi dialogando com o alheio e o “estrangeiro” que Bonvicino trocou as referências de sua poesia, para chegar a resultados pouco comuns, de fatura indiscutível, o que ocorre, sistematicamente, a partir de “Ossos de Borboleta”, de 1996.
SINTAXE
Deste modo, “Até Agora” o firma como um dos mais importantes poetas brasileiros vivos e o nome mais destacado de sua geração. Como afirma Hansen: “Bonvicino nunca ficou pós-utópico. Insiste na inutilidade negativa da sua arte que faz dos ossos de sépia e ossos de borboleta e flores árticas e ptyx e rosas saxífragas e abolidos bibelôs e tutameias de nonadas da tradição moderna e de outras representações a matéria da sua liberdade poética. Dissolvendo essa matéria múltipla e contraditória na sintaxe feita de sintaxes, inventa um conteúdo de verdade que está aí, até agora, à espera do leitor que vai vir”.
Últimas fotos de Régis Bonvicino

Aurora Fornoni Bernardini
Aurora Fornoni Bernardini é professora, escritora e tradutora. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). Atualmente é professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: daquela estrela à outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O exército de cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Indícios flutuantes — poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo sob o fogo: confissões (Ed. Martins, 2008); em 2007, foi vencedora do prêmio Jabuti (terceiro lugar) também pela tradução de Indícios flutuantes; em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os sonhos teus vão acabar contigo”: prosa, poesia, teatro, de Daniil Kharms (Kalinka, com Daniela e Moissei Mountian).