“Quem me pede pra contar toda a verdade já está me exigindo uma mentira.”


Um escrivão eternizou o nome Milton com uma grafia estranha e transformou “T” em “L” e “N” em “R”, esse homem sem querer criou uma marca. Um prenúncio do artista que usaria como ninguém letras, palavras e cores.  Milton Viola Fernandes, nascido no Méier, bairro do subúrbio carioca, filho de um espanhol e uma brasileira, transformou-se em Millôr. 

O talento nos traços surgiu desde cedo, influenciado pelos quadrinhos do super herói Flash Gordon. Com apenas treze anos, começou a trabalhar na revista O Cruzeiro. Lá, ele aprendeu tudo, a revista deu salto até se tornar a maior da América Latina, com os impressionantes 750 mil exemplares. Sob o comando de Assis Chateaubriand, o garoto viu de perto grandes artistas a passar por aquela redação. Depois seguiu para o Diário da Noite.

Como um flâneur, vagou por bares, cinemas, teatros, confeitarias, galerias da Cinelândia. Presenciou passeatas, golpes, correrias, sambas, crimes. O talento nas letras veio na sequência. Foi um polivalente: prosa, teatro, artes plásticas, poesia, pensamentos, frasista de primeira, foi até vice-campeão mundial de pesca de atum (um dos seus orgulhos).  

As sacadas ácidas, o humor criativo e uma cultura impressionante o transformaram em um artista único. Difícil falar de Millôr sem ser superlativo.

Millôr também foi tradutor, focou seu trabalho nas peças de William Shakespeare. Dizem ser um dos melhores: o Millôr e não o inglês. Por falar em teatro, Liberdade, liberdade, escrito por ele e Flávio Rangel, foi um marco e um ponto de resistência contra a ditadura militar (1964-1985). O texto cheio de humor, crítica social e denúncia política se combinava com músicas conhecidas: temas como racismo, desigualdade social, antissemitismo eram citadas.Foi um sucesso de crítica e público, só os censores não gostaram.A peça foi elogiada até pelo jornal New York Times, todavia para os milicos daquele tempo, a opinião dos americanos só serviaquando agradavam.


“Estamos convencidos que pior da nossa Democracia é que ela acaba sempre nas mãos dos democratas.”


Em 1964, Millôr Fernandes lançou a revista Pif-Paf lado de Claudius, Fortuna, Jaguar, Ziraldo, entre outros. Publicaram apenas oito números. Lá estavam Hai Kai, as Fábulas Fabulosas, as charges… era de uma criatividade, ironia fina e que lembrava o grupo de humor inglês Monthy Phiton. Inteligência demais incomoda e Pif-paf acabou liquidado pela censura. Depois o guru escreveu colunas para o Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, Estadão, revista Veja e outros periódicos.

“O escritor para ser genial não precisa ter muitas idéias, basta de ser incompreensíveis. “Sim, irmão, o dinheiro não é tudo. Tudo é a falta de dinheiro.”

Até chegarmos aoPasquim. Uma explosão de ousadia em um dos períodos mais nefastos da História brasileira. O Pasquim é alçado a ícone da imprensa livre durante os anos 1970. As charges, as piadas, as matérias eram memoráveis, porém as entrevistas produzidas viraram itens de colecionador: simples, leves e soltas, bem diretas e nada formais. As conversas com a atriz Leila Diniz (sexo livre e palavrões com asteriscos), Madame Satã (figura da boemia carioca); Lula (ainda sindicalista); Elke Maravilha (inteligentíssima) foram marcantes.

“Me dêem mil atos de absoluta moralidade e eu construirei um bordel.”

 Eu tive a oportunidade de conversar com Millôr Fernandes, uma única vez, na casa de um amigo em comum, Luiz Gravatá. Foi bem rápido, falamos sobre Frank Sinatra e o Rat Pack, um grupo de artistas que fazia show ao lado do Velhos Olhos Azuis, gente do quilate de Dean Martin e Sammy Davis Jr.

Millôr fez dois belos desenhos pra mim, o mais especial está na primeira página do livro A Bíblica do Caos.Uma obra com mais de cinco mil frases que tenta condensar o pensamento cético, irreverente e muitas vezes pessimista do autor. Na pequena ilustração, uma ema com a cabeça enfiada na terra, talvez uma referência à minha timidez.

“Livro não enguiça.”

O homem que foi um dos inventores do frescobol nos deixou no dia 27 de março de 2012. Foram mais de sessenta anos de trabalho acumuladonum acervo gigantesco em Ipanema que até hoje é pouco explorado por pesquisadores. Atualmente, está sob os cuidados do Instituto Moreira Sales. Em 2013, um monumento instalado no Arpoador em frente ao mar foiinaugurado por amigos como Fernanda Montenegro e Carlos Lira. O banco panorâmico, criado por Jaime Lerner e desenhado por Chico Caruso fica de frente pro mar. Uma homenagem para o homem que infelizmente não deixou discípulos.

“A morte é compulsória, a vida não.”

 

Outras frases de Millôr Fernandes

“A democracia é o último refúgio da impossibilidade de governo.”

“Eu desconfio do idealista que lucra com seu ideal.”

“Só depois que a tecnologia inventou o telefone, o telegrafo, a televisão, todos os meios de comunicação à longa distância, foi q se descobriu que o problema de comunicação mais serio era o de perto.”

“Cada vez sobra mais mês que o fim do dinheiro.”

“O preço da sabedoria é detestar tudo.”

“Entre o riso e a lágrima há apenas o nariz.”

 “Escritor, para ser genial, não precisa de muitas idéias, basta q sejam incompreensíveis.”

“Brasil, pais da faturo.”

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Leonardo Cohen

É jornalista e pesquisador.

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