Mas a palavra, o nome das coisas, tinha desaparecido como se algo a tivesse engolido e levado, sem possibilidade de retorno. As árvores não falavam mais. Essa sensação de vazio na boca, debaixo da língua, a quebra irrecuperável das letras que permitiam o som e a possibilidade de expressar o desejo, a necessidade, a boa e a má educação. A premência de voltar a esmagar com os dentes a polpa de uma boca, de permitir o calor do fruto-língua, provocava crescente ansiedade entre as casas. O chão, onde assenta a expressão do mundo que conhecemos, seus nomes e configuração, parecia ter-lhes escapado.  A cidade tinha sido abandonada frente a um mundo que era agora incapaz de nomear[1].

 

         Ainda hoje, sentada na minha casa em Lisboa, a sete mil duzentos e oitenta e seis quilómetros de distância, recordo com detalhe aquela cidade que se desenhava a partir de um jardim. Uma praça que era um jardim que era um corpo que era um fruto. Junto ao pescoço, existiam duas pequenas casas. Espreitei pelo vidro da primeira, afastei o pó que se acumulava e fiz das mãos uma pala, para entrever uma escadaria engolida por um buraco, levando a lugar nenhum.  A segunda tinha a porta aberta. Tinha lavatórios para as mãos e lavatórios para os pés. Quando molhei as mãos, sabendo que o que realmente desejava era molhar os pés, voltei por momentos à ilha vulcânica onde cresci. O mesmo cheiro a água férrea, os mesmos acessos à lava disfarçados por escadarias, as mesmas ofertas de cura pela água no centro de vulcões aparentemente extintos. Só que aquela água escorregava, tinha um óleo nela. O mesmo óleo cantado da língua que escutava à minha volta. Esfreguei os dedos, não me apeteceu secá-los, sorri antes de sair. Mais à frente, o meu guia, o Mestre Bucha, que cumprimentava toda a gente com quem se cruzava, mostrou-me um grande relógio desenhado num canteiro. Páginas de pedra para o dia, para o mês, para a estação – Outono – e um arbusto recortado desenhando: “2023”. Em cada dia, alguém, não sei se à meia noite ou muito cedo, seja como for antes da cidade acordar, ia ali e virava os dias como se fossem páginas. Poços de Caldas tinha um relógio fincado na terra. Talvez todas as cidades o tenham, mas ali era literal. O relógio é o colo que marca o ritmo do peito. No peito do jardim, como seria de esperar, existiam bancos de madeira – e os bancos são corações disfarçados, toda a gente sabe. Todas as manhãs em que tínhamos tempo livre, eu e o Augusto[2] sentávamo-nos ali. Seria melhor dizer que nos alheávamos ali. Ele escrevia os seus textos ou os seus versos, eu escrevia um pouco mais do conto, ou pensava no que iria dizer sobre a língua, o assunto que me tinham pedido para falar. Era o conto que me trazia ali, são sempre as histórias o que nos traz aos lugares, mas vinha também para participar no Flipoços. Tinham também nos proposto falar sobre a Desmanche, oficina onde buscamos desmanchar para criar[3]. Iria ainda lançar o meu novo livro de poesia Carta de Amor ao Pesadelo[4]. O conto chamava-se a Timidez das Árvores. Perdia-me com frequência entre tudo isto e o tempo, que passava demasiado rápido. Quando me perdia, encontrava algo (como geralmente acontece). Estava sentada ali, curiosamente parecíamos voltar sempre ao mesmo banco do jardim, e deixei o olhar fugir para a fonte que se oferecia à frente.  Nas suas águas estagnadas, amarelas e castanhas, boiavam pequenas pétalas cor de rosa. Após algum tempo, dei-me conta de que não estavam exatamente paradas. Moviam-se subtilmente, com uma lentidão exasperante, no sentido contrário aos ponteiros do relógio. Pensei ver a língua inteira, cada uma das palavras do português se movendo através dos séculos, exatamente ao mesmo ritmo daquelas pétalas.

         Nesse dia mesmo, escrevi um poema que começava assim:

 

Me apetece morrer
morrer morrer três vezes morrer
dez vezes morrer.
A seguir ainda morrer mais umas cem vezes
passar a vida morrendo
morrer uma vez por dia
morrer dez vezes por dia
e andar pelas ruas
depois da morte
falando baixinho com a louca
que passa a vida vivendo,

a fingida.

 

         Por que terei escrito, naquele dia em que observei a relação entre palavras e pétalas, um poema sobre mortes repetidas? Deu-me vontade de rir, ainda me dá, que o tivesse escrito em português do Brasil. Tentei imitar uma variante que não é a minha, usar um sotaque que não domino. Por momentos, senti-me ridícula. Porém, só me senti ridícula até perceber estar aberta às metamorfoses. Eu sabia saborear os os frutos da língua! Imediatamente, senti-me orgulhosa – morro, morro, volto a morrer, renasço, como a própria língua. 

         Por mais que desejasse permanecer ali, sentada, tomando palavras como doses de uma droga boa, tinha de levantar-me. O jardim não terminava ali. Mais adiante, na sua anca esquerda, nascia um teleférico que levava ao topo da montanha que divisava da janela do quarto.

         – Você está bem? Tem medo? Não tenha medo… – disse-me a funcionária, antes de fechar a porta da carruagem.

         – Ela deve fazer isto centenas de vezes, todos os dias. Como consegue manter tamanha gentileza? – pensei.

         Não era a primeira vez, nem seria a última, que me chamava à atenção a gentileza das pessoas de Poços. Um pouco antes, um empregado do café oferecera-me a receita do seu pão de queijo, apenas por que eu dissera que amava pão de queijo. Em Minas, servem pão de queijo tostado, recheado com queijo. Benditas sejam as redundâncias.

         – Minas é assim – repetia-me o Augusto, em jeito de explicação. – Não é como São Paulo… (aqui vale a pena referir que ele é de São Paulo).

         As pessoas, para que não pensem que exagero, eram tão gentis com desconhecidos que paravam os carros nas passadeiras para deixarem os cães atravessar. Vi-o duas vezes, com meus próprios olhos. Curiosamente, o mesmo cão – um cão de pêlo castanho e focinho pontudo, passando firme, linha branca após linha preta, sem pressa, enquanto os carros aguardavam, pacientemente.  Via com os olhos da estrangeira, claro, como alguém que está de passagem. Podia permitir-me imaginar uma cidade toda feita de pessoas gentis, mesmo sabendo que tais cidades não existem. Viajamos na expetativa de cidades impossíveis, as mesmas cidades invisíveis que Italo Calvino tão bem desenhou.

         Subimos, portanto, no teleférico. Enquanto aguardávamos a nossa vez, eu pensava no medo. Tinha medo que o teleférico pudesse tombar, precisamente aquela carruagem onde eu seguiria. Quando temos medo, somos invariavelmente o centro do mundo das catástrofes. Até a carruagem avançar, mesmo que um pouco acalmada pela simpatia da funcionária, o suor ia crescendo na palma das mãos. Porém, depois veio a floresta, uma mata densa. Percebi que o teleférico adormecia à medida que avançava – Era um teleférico manso. E eu tinha chegado à floresta, à Mantiqueira, ao sítio onde se passaria o meu conto. Não importava que fosse mentira, a ficção é a generosidade dos mentirosos.

         A Timidez das Árvores é um dos contos da coletânea Todas as Histórias de amor que queria ter ouvido, um livro que me obsessiona há anos e que demora a avançar.  “Coroa tímida”, a expressão que inspira o título, é um curioso fenómeno que até hoje a ciência não conseguiu explicar. As copas das árvores vizinhas não se tocam, nunca se tocam, parecendo desenhar uma delicada metáfora de impossibilidade. O conto parte de um acontecimento fantástico – o crescimento de pedras, em lugar de frutos, num Marmeleiro plantado no centro de uma pequena cidade na floresta da Mantiqueira, e uma delas acertar a cabeça de uma criança. Alguns habitantes começam a apedrejar furiosamente a árvore. Outros, indignados com tamanha mesquinhez contra um ser imóvel e silencioso, procuram meios de a proteger do que chamam “fascistas assassinos, incapazes de compreender uma pétala”. Defendem que árvores gestando pedras seriam sintoma de algo maior. A timidez das árvores, abalado o amor entre vegetais e humanos, traça um diálogo atribulado entre veneração versus derrube de troncos. A floresta, a praça e o jardim são o cenário do enredo. Reparem, ali não era a Mantiqueira, era outra floresta. Invento para vocês, invento para mim, e a floresta ajuda. Uma floresta é assim – uma eterna estática inventando histórias para as fogueiras. Enquanto subíamos, anotei na mente: “Terá um preâmbulo e quatro partes: PARTE I: Falam os Humanos; PARTE II: Falam as Cabeças; PARTE III: Falam as Árvores; PARTE IV: Falam os Lobos Guarás”. Aos lobos, a última palavra.

         Lá em cima, mesmo no topo, sentamo-nos noutro banco, de onde se via todo o vale. O Augusto escreveu outro poema e lembrou-se do Roberto Piva e da Hilda Hilst. Olhávamos as montanhas, eu pensava no Brasil, na extensão infindável do desejo, e revia as frases soltas que já tinha escrito.

 

         “A pedra volta a ser fruto e logo volta a ser carne, e pedra, antes de se imolar. A pedra chora e nisso sente enorme alívio.”

         “Às cabeças enterradas, às cabeças que choravam, às cabeças que não conseguiam sair do mesmo lugar – vamos chamá-las as cabeças cegas. Neste último caso, mal os seus filhos nasciam, os aprisionavam – punham-nos dentro de gaiolas douradas a que chamavam escolas, vestidos, manuais de boa educação.”

         “Esse não foi o único dos estranhos episódios que decorriam no interior das casas – um homem se estrangulou por muito tempo.”

         “Podeis nos achar tímidas pois vivemos no silêncio. Apenas quando o vento vem conversar, falamos um pouco. Todo o som que prolifera em torno de nós é produzido por pássaros e pelas patas de um lobo. Porém, olhai-nos de facto – reparem na imensidão de nossos troncos eretos dirigidos ao céu”[5].

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          Foi anoitecendo, as montanhas fecharam como o mar se fecha ao entardecer. Quando descemos, já era noite no jardim. Virámos à direita. Ali decorriam os eventos, o Festival. Havia um formigar intenso de pessoas. Logo à entrada, uma livraria, a Livruz, por onde as pessoas deambulavam formiguentas entre prateleiras. Ali, viria a conhecer a Gisele[6], que estava sempre correndo para resolver alguma coisa mas parava todas as vezes que me via para abraçar-me e dizer-me como era bem vinda, o Eric, o José Manuel, a Célia, o Renato, o Yan, e muitos outros que nos viriam a acompanhar as noites. Falaríamos sobre coisas que desconhecia, regaríamos o eterno jardim das conversas. Amigas, amigos. Os Festivais são eventos passageiros de enorme densidade e, deseja-se, longos frutos. Cabeças enfiadas em mais livros, navegando literaturas, por exemplo. Já tinha sentido esse formigueiro em torno do Festival, ainda antes desse dia, o dia da abertura. Tinha ido a várias escolas públicas. Todos os dias a Helena[7] chegava sorrindo para me buscar. Ela chegava sorrindo mesmo quando estava exausta. Seguíamos conversando e rindo no carro. Em todas as escolas, quando percebiam que eu era portuguesa, faziam-me a mesma pergunta: “Tu conheces o Cristiano Ronaldo?” Procurava compensar a deceção tremenda que se seguia ao meu: “Não”. Contava, orgulhosamente, que tinha nascido na mesma ilha onde ele nasceu. Outra ilha de águas e vulcões no meio do Atlântico. Nem sempre funcionava, mas  nunca deixei de tentar. Podíamos sempre falar do tamanho dos oceanos ou da beleza das ilhas.

         É muito curioso, o modelo que todas as cidades parecem reproduzir – o centro embeleza-se, entre obras constantes, como quem procura manter o verniz perfeito. À medida que nos afastamos do centro, naquele caso em direção às escolas, a paisagem muda. Mudava do mesmo modo de todas as cidades que conheço – a periferia oferece a dificuldade, os longos transportes para chegar a casa, as vidas curvadas por excesso de peso nas costas, os prédios encavalitados uns nos outros, as casas onde a pintura se desfaz. Reparem, mesmo nos centros pode observar-se que o verniz estala entre as cirurgias cosméticas. As mortes repetidas. Tantos centros vendidos ao turismo fervem de dia e morrem à noite, pois já quase ninguém os habita. Como Paris, ou como aquele que parece ser o destino inexorável de Lisboa. Em Poços, um dos braços de jardim levava ao que teria sido a estação de caminhos de ferro, entretanto desativada. Era o longo braço esquerdo do jardim elevando-se, meio morto. Parecia lembrar como os glamorosos vinte e dois casinos ecoavam agora salas vazias entre ecos de bailes e dinheiro. Lembrava como nas Termas existia uma sala separada para os pobres e para as piores doenças, onde estes se sentavam numa longa espera pelos vinte dias de tratamento. Entre os dedos desse braço havia uma casa incendiada construída sobre uma pedra gigantesca. Leram bem. Uma grande casa incendiada, com as paredes ainda lambidas pelo fogo e pela tragédia, segura por uma pedra arredondada do tamanho de um quintal. Como o prédio ao lado da minha casa, em luta para não se tornar mais um hotel de Lisboa. Relembro. O centro de Poços de Caldas é um jardim. Um jardim a sério, grande, cheio de sombras, que demora tempo a percorrer. Um jardim onde se observa como as águas paradas não estão de facto paradas. Um jardim mostrando como o presente se move entre as estações do passado e as do futuro. Assim, de forma apenas aparentemente estática. Como os frutos. Como a língua. 

[1]   Excerto do conto inédito A Timidez das árvores

[2]   Augusto Meneghin, poeta e artista visual brasileiro.

[3]   Oficina de práticas e criação literária. https://www.desmanche.net/

[4]   Editora Urutau, 2023.

[5]   Excerto do conto inédito A Timidez das Árvores.

[6]   Gisele Corrêa Ferreira, coordenadora do Festival Literário Internacional de Poços de Caldas – Flipoços.

[7]   Helena Longhi, elemento da equipa do Festival.

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