1. Tenho levado com alguma irrazoabilidade raivosa nas redes sociais. É uma raiva engraçada – cega, mas exercida em nome do amor. Vem sempre de gente que não conheço de lado nenhum, mas que consegue fazer ataques ad hominem adivinhando-me mil intenções por razões desconhecidas. É uma raiva catequizadora ainda – aponta-me o caminho para a minha melhoria moral, faz-me saber que, malgrado os meus crimes, posso ainda ser um soldado ao serviço da virtude.

O meu pecado, a vileza que justifica a revolta, os ataques, os desvarios, pasme-se, é eu dizer que “Boa tarde a todos, a todas e a todes” é de uma inutilidade suprema. Torno-me assim em persona non grata por gente que não quer qualquer discussão nem qualquer razoabilidade: quer, simplesmente, estar numa posição de superioridade moral. E o balizamento moral que se cria só existe na cabeça desta gente, que assume e reafirma a sua virtude, sempre incapaz de se pôr em frente ao óbvio: um simples “Boa tarde” já cumprimenta toda a gente.

A cavalgada prossegue, porque as redes sociais têm sido isto: ou estás contra ou a favor. E, se estás do outro lado da barricada, és um alvo a abater, a condenar, a vilipendiar, a insultar. As intenções são sempre cogitadas, e tem graça ver como quem se esforça por indagar consegue a proeza de bater sempre ao lado. O assunto tem servido para abrir trincheiras até entre gente com proximidade ideológica. E eu, que passei anos a fazer activismo com gente de esquerda, tenho cada vez mais dificuldade em entender o buraco em que a esquerda está metida.

Quando se exacerba o peso da identidade, só se consegue egocentrismo e auto-centramento. Têm sido os movimentos que se baseiam nisto a tentar dominar a batalha pela linguagem, o que por si só já arrepia: batalha pela linguagem foi o que o Estado Novo travou durante décadas, deixando escritores às margens, negando às escritoras o acesso à produção simbólica. Também o salazarismo gostava muito de controlar a boca alheia. Ora, a censura não é mais fofa nem mais branda por ser de esquerda, e é de censura que se fala quando se quer impôr um modo de falar, fazer tábua-rasa dos sentidos, e ainda assumir que os assuntos, na literatura como na vida, são propriedade privada e intransmissível de quem os vive — ou os é.

2. Nisto, surgem ainda os leitores da sensibilidade, uma espécie de censores prévios das publicações. Pasme-se, até das publicações de livros já publicados (ou seja, em edições posteriores). Esta semana, veio a público a censura justificada em nome das boas intenções: livros infantis de Roald Dahl foram modificados de forma a que lhes fosse tirado tudo o que pudesse incomodar alguém. Uma personagem deixa de ser gorda, passando a ser enorme (o Schwarzenegger e Hafþór Júlíus Björnsson também são enormes), outra deixa de ser feia (não passa a bonita, só deixa de ser feia); os oompa-loompas deixam de ser homens pequenos e passam a ser pessoas pequenas, para serem mais inclusivos (aqui, passam, na interpretação, a poder ser o que não são).

É o caos, o disparate. Usa-se o trabalho de Dahl para se escolher cirurgicamente o que ali serve a qualquer coisa, deturpando-se a obra inicial e fazendo-se da obra literária uma ferramenta com propósito pré-definido, ao serviço do que apetecer a quem se põe no lugar de arauto da salvação moral do mundo. Tudo em nome de uma fofura qualquer que, convém dizer, não é a vida. E não é que a literatura seja a vida em si, mas convém que, quem se mete neste jogo de crença, consiga acreditar que o que ali tem é o que existe. E que, inebriados por uma ilusão, os escritores continuem nessa busca incessante — cansativa, impossível — de lhe conseguirem roubar o âmago, acreditando que, objectivamente, o entregam de bandeja no que escrevem.

Com isto, perde-se ainda a responsabilização do leitor. A leitura deixa de ser uma relação dialógica, uma actualização da relação dialógica iniciada ao autor. Não há espaço para essa resposta porque deixa de haver uma pergunta. Não há espaço para a interpretação porque só há um caminho a direito. Estupidificam-se os leitores, que, com isto, só têm acesso à tábua rasa.

3. Ouço muita gente a perguntar qual é o papel da literatura no âmbito de X, o que é que deve fazer para melhorar Y, de que forma pode ajudar a incluir K. Neste cenário, a literatura, de pergunta, passa a resposta; de abrir horizontes, passa a afunilá-los; de nos confrontar com a vida, passa a encaminhar-nos; de arte, passa a política; de sinceridade, passa a dogma. A arte é transformada em catequese, em escola primária, em boas intenções, em sentimentozinhos. E, nisto, perante um ataque à essência da arte que praticam, parece-me que realmente os escritores têm hoje um papel fundamental: o de não deixarem que as palavras deixem de ter significado.

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Ana Bárbara Pedrosa

É autora dos romances “Lisboa, chão sagrado” e “Palavra do Senhor”, ambos publicados pela Bertrand. Estudou literatura, linguística e economia política. Atua como romancista, cronista e crítica literária. Viveu no Brasil e nos Estados Unidos. Atualmente, vive em Portugal.

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