Tradução de Henrique Nascimento
Se quisermos conhecer Baudelaire, vamos encontrá-lo
por inteiro no livro[1]
que lhe dedicou Charles Asselineau[2]
e no admirável estudo que Théophile Gautier alocou na abertura de suas Obras
Completas. Eu desejo somente anotar as minhas impressões do dia em que pela
primeira vez vi este grande poeta, do qual tenho orgulho de ter sido amigo, e
tentar evocá-lo tal como apareceu para mim no alvorecer de sua juventude
graciosa e encantadora.
Se alguma vez a palavra sedução pudesse ser
aplicada a um ser humano, seria a ele, visto que tinha nobreza, beleza um tanto
infantil e viril, o encanto de uma voz rítmica, bem regulada, e a mais
persuasiva eloquência, devido a uma profunda unidade de seu ser; seus olhos,
transbordantes de vida e de pensamento, falavam ao mesmo tempo que os seus
espessos e finos lábios purpúreos, e não sei que arguta emoção corria em seu
longo, espesso e sedoso cabelo preto. Ao vê-lo, vi o que nunca tinha visto, um
homem que se me afigurava como um homem deveria ser, na glória heroica de sua
primavera, e ao ouvi-lo falar comigo com a mais afetuosa gentileza, senti esta
comoção que nos transmite a aproximação e a presença de um gênio. Então, à
medida que fluía o seu discurso claro e rápido, de um verdadeiro parisiense,
parecia-me que os véus caíam dos meus olhos, que se abria ante mim todo um
mundo infinito de sonhos, imagens, ideias, e eu não podia me cansar de
contemplar os traços desse poeta, tão ousado, tão característico, tão firme,
embora a sua fulva palidez ainda permitisse ver as rosas da adolescência, que
estava apenas sombreada pelo buço negro de uma barba por nascer.
Não é de se admirar que Baudelaire tenha parecido
bizarro aos tolos ociosos e aos que nada têm a dizer; para eles, de fato, devia
ser tudo o que há de mais estranho, porque ele não dizia nada que não fosse o
oposto do lugar-comum e tinha, naturalmente, herdado de sua mãe infinitamente
distinta aquelas belas maneiras desusadas, aquela polidez ao mesmo tempo
simples e refinada que já em 1842 poderia perturbar certos burgueses e dar-lhes
a sensação de anacronismo. Ele possuía uma profunda erudição, sabia tudo o que
os livros ensinam e nem sequer pensava em exibir sua ciência; mas se sentia que
era bem informado sobre tudo e nunca falava de mãos vazias. Por fim, como conta
Gautier, tendo já visto os mares da Índia, Geylang, a península do Ganges, ele
tinha conservado nas suas pupilas vibrantes o ressurgimento da luz viva e da
claridade imensurável dos horizontes.
Como é fácil se convencer lendo os versos de
Baudelaire, este poeta nunca amou mais de uma mulher, realmente; a Jeanne[3]
que ele sempre e tão magnificamente cantou. Ela era uma garota negra, de
estatura muito alta, que trazia em sua ingênua e soberba cabeça morena uma
coroa de cabelos violentamente cacheados, e cujo andar majestoso, cheio de
graça feroz, tinha qualquer coisa de divino e de bestial. O acaso fez com que,
tendo-a encontrado várias vezes com as suas amigas, eu a conhecesse antes mesmo
de ver o poeta que mais tarde a imortalizaria, e que era completamente
desconhecido. Usando, como ainda a vejo, uma pequena touca de veludo que lhe
caía perfeitamente, vestida com um vestido de lã azul escura, grossa, e
adornado com uma trança dourada, ela nos falava longamente sobre o Senhor
Baudelaire, seus móveis finos, suas coleções, suas litanias; e, de fato, como
devia parecer maníaco a esta bela ignorante um homem possuído pelo amor absoluto
pela perfeição, que punha o mesmo esmero em todas as coisas, e que se aplicava
em polir as unhas tão minuciosamente como em acabar um soneto!
Acrescente-se que esse contemplador às vezes fazia
Jeanne se sentar em uma grande poltrona à sua frente; olhava-a com amor e a
admirava longamente, ou lhe dizia versos escritos em uma língua que ela não
conhecia. Possivelmente, esta é talvez a melhor maneira de conversar com uma
mulher, cujas palavras sem dúvida se chocariam na inebriante sinfonia que canta
a sua beleza; mas também é natural que a mulher não concorde e se surpreenda ao
ser adorada como uma bela gata. Além disso, Baudelaire, extremamente rico na
época, que, por gosto, habitava num apartamento minúsculo, tinha o hábito de se
livrar dos seus móveis quando encontrava nos mercadores outros mais belos,
pelos quais os substituía, de tal forma que os seus porteiros não se espantavam
ao ver a escada apinhada de entregadores ocupados em realizar aquela reposição
e mudança sem fim. Nada poderia ser mais natural em um artista do que esse
apetite por beleza e diversidade; mas é compreensível que essas idas e vindas
devam ter confundido a mente da bela donzela negra.
Também não se calava sobre este assunto; mas
tinha-nos negligenciado ao nada dizer sobre a posição social e sobre a idade do
senhor Baudelaire; desse modo, de acordo com suas histórias fantásticas, eu o
imaginei como um velho de pelo menos setenta anos, vestido com uma bata macia
de seda, grisalho, barbeado, irônico, tirando fumo espanhol de uma caixinha de
rapé dourada e tendo vivido em meados do século XVIII. Ora, no meio de uma
noite quente e encantadora de verão, cheia de alegria, perfumes e brisas
amigáveis, quando era bom respirar e sentir-se vivo, eu estava passeando no
Jardim de Luxemburgo com Privât d’Anglemont[4]
que, mostrando-me a poucos passos de nós um jovem de vinte anos, bonito como um
deus, disse-me em tom alegre, como se estivesse feliz por encontrar um
camarada:
— Eis aqui Baudelaire!
— O quê! — Eu disse. — Então ele é parente daquele
senhor Baudelaire sobre quem a bela Jeanne fala com tanta frequência?
Mas, disse Privât estourando de rir: — É o
próprio!
E
sem pular a cena, como um personagem do Sr. Scribe[5] teria feito, ele imediatamente nos
apresentou um ao outro. Nunca houve um choque mais vivo, mais absoluto, mais
espontâneo. A partir desse instante, desse segundo, antes de termos trocado uma
palavra, éramos amigos como deveríamos ser durante a vida e para além da morte.
Nós não estávamos nos conhecendo; não seria mesmo correto dizer que nós nos
encontramos; nós estávamos continuando uma conversa começada (onde? em que
estrelas?), uma conversa sem trechos, sem períodos, verdadeiramente
parisiense, na qual às vezes uma única palavra, um gesto esboçado, um piscar de
olhos, continha muitos fatos, pensamentos e insights profundos subitamente
revelados. Claro, Baudelaire não me disse que era poeta, mas, à primeira vista,
eu adivinhei, pois possuía todos os sinais da raça. A noite havia chegado
clara, suave, encantadora; tínhamos saído do Luxemburgo, caminhávamos pelas
avenidas exteriores e pelas ruas, onde o poeta das Flores do Mal sempre admirou
curiosamente o movimento e o misterioso tumulto; Privât d’Anglemont caminhava
em silêncio, um pouco longe de nós, compreendendo ser inútil em nossa conversa,
pois, prodigiosamente intuitivo e a tudo adivinhando, ele percebia que não devia
perturbar o ingênuo intercâmbio dessas duas almas, desejosas de se possuírem e
de se penetrarem mutuamente. Naquela noite, que foi a melhor recordação da
minha juventude, Baudelaire prodigalizou para mim todos os tesouros e as
incalculáveis riquezas de sua mente, e era como aquela princesa dos contos de
fadas que com seus lábios entreabertos deixou cair uma torrente de diamantes e
pedras preciosas.
Tínhamos
que continuar unidos por uma amizade fraterna, e desde então passamos boas e
longas noites com Pierre Dupont[6],
Emile Deroy[7]
e outros ainda, no pequeno quarto que ocupava com meus pais, na casa de Jean
Goujon, na Rua Monsieur-le-Prince, falando de arte, mulheres, poesia, pintura,
ouvindo as canções populares das quais amávamos as melodias selvagens e
carinhosas e os versos cheios de sutis e delicadas assonâncias! Mas o que mais
me encantou nas conversas íntimas com o poeta foi o desenvolvimento e as
infinitas variações dos temas primitivos com os quais ele primeiro me
embriagou; porque, repito, ele imediatamente me abriu o jardim das suas ideias
e dos seus sonhos, cheio de grandes flores escarlates, águas calmas e paradas,
perspectivas inesperadas e verdores vibrantes, como um vasto paraíso.
Eu volto àquela noite mágica; ela estava fugindo
com um voo ágil, enquanto conversávamos, deixando arrastar seus véus azuis e
cinturões de estrelas, e eu não sei que horas eram quando ambos nos sentíamos,
ao mesmo tempo, dilacerados por uma fome de canibais. Privât d’Anglemont, que
conhecia Paris casa por casa como se as tivesse construído, encontrou um cabaré
ainda aberto, e era precisamente o cabaré que nós necessitávamos; íntimo, pouco
conhecido, ignorado pelos civis, onde se vendiam um verdadeiro vinho de uvas e
comidas suculentas.
Sentamo-nos à mesa, e então foi a vez de Privât
falar, de nos encantar com seus jorros inesperados e suas historietas cheias de
romances; ele sentiu que à força de estarem embriagadas de êxtase e por terem
escalado os cimos, as almas de seus dois amigos seriam despedaçadas se ele não
as colocasse rapidamente de volta no fluxo de uma conversa frívola e divertida,
o que fez com um tato maravilhoso. Então, eu saboreei o prazer de ouvir
discorrer dois homens perfeitamente espirituosos, e como o Palémon da écloga[8],
ouvir duas flautas de igual precisão cantarem alternadamente e se responderem
com notas gêmeas, escalas nitidamente adejadas e trinos de pássaros a
recortar o seu louco recamo dourado. Nos assuntos mais íntimos, Baudelaire era
o mesmo homem superior que nas concepções grandiosas; comendo as linguiças
defumadas do taberneiro, e seu peru frio temperado com um remoulade[9],
que traria um morto de volta à vida, nós começamos a falar de culinária: o que
o poeta conhecia bem, como a tudo; ele aprendera na Índia, Bourbon e Maurício
receitas extraordinárias e as explicava com uma sedução irresistível. Não me
lembro em qual país da África, hospedado com uma família a quem seus pais o
endereçaram, ele não demorou a se entediar com o espírito banal de seus
anfitriões e foi morar sozinho em uma montanha, com uma menina negra muito
jovem e alta que não sabia francês e que lhe cozinhava seus ensopados
estranhamente apimentados em um grande caldeirão de cobre polido, em torno do
qual negros garotinhos gritavam e dançavam nus. Ah! Estes ensopados, como
Baudelaire falava bem deles, e como os teríamos comido com prazer! Mas tu não
deverias perguntar sobre eles nos restaurantes da moda, onde o garçom teria
respondido, como de invariável costume: “Há, senhor, tudo o que quiser: bifes,
costeletas!”
Alguns dias depois, fui ver Baudelaire em sua
casa; seus aposentos e, para usar a expressão pitoresca de Théophile Gautier, o
que ele escondia ao seu redor, eram de fato a imagem exata de si mesmo; eu não
me lembro de ter visto uma casa que fosse mais parecida com seu dono. O poeta
vivia na ilha de Saint-Louis, no Cais d’Anjou, naquele velho e famoso hotel
Pimodan, soberbo e triste, cujas pinturas decorativas foram transportadas para
o Louvre. Havia nessa nobre residência apartamentos principescos, nomeadamente
aquele em que o pintor Boissard[10]
se orgulhava, com razão, de um piano pintado inteiramente pela mão de Watteau![11]
— Que hoje só pode ser pago por um Rothschild.[12]
Mas Baudelaire, por sua vez, tinha escolhido um alojamento exíguo, com
paredes muito altas, composto por várias pequenas divisões sem atribuição
especial, cujas janelas deixavam ver o verde e largo rio. Todas as acomodações
estavam uniformemente forradas em papel acetinado com enormes ramagens
vermelhas e pretas, que combinavam bem com a pesada e antiga cortina de
damasco. Nos fundos de uma elegância feroz e voluptuosa, reavivados aqui e ali
por antigos e fulvos brocados, estava pendurada, posta sob vidro e sem
molduras, toda a série das litografias do Hamlet de Delacroix[13],
e também uma cabeça pintada por Delacroix, de expressão singular, intensa,
alienígena, que representava a dor.
Poltronas e divãs, os móveis para se sentar,
cobertos com capas de tela acetinada, eram gigantescos, feitos, como se poderia
pensar, para dar a ideia de uma raça de titãs, como estes pardieiros e palácios
que Alexandre, rei da Macedônia, deixou para trás ao partir da Índia. Mas o que
mais me impressionou foi a escrivaninha, também enorme, que servia tanto para
comer quanto para escrever. Talhada em nogueira maciça, era uma daquelas peças
de mobiliário de engenho, como as do século XVIII, mas que os carpinteiros
modernos são impotentes para imitar e reproduzir. De fato, a escrivaninha era regularmente
trabalhada em torneados, aparentemente caprichosos e arbitrários, mas que, pelo
contrário, eram o resultado de cálculos profundos. Esta linha infinitamente
ondulante não apenas encantava com seu capricho gracioso, mas foi imaginada de
tal forma que, por mais que se sentasse em frente à mesa, o corpo se encontrava
apoiado, encaixado suavemente e sem rigidez. Eu não acredito que nesta mesa as
pessoas encontrariam As Flores do Mal; mas teria sido bem difícil escrever ali
coisas comuns e vulgares.
Ao percorrer o original e divertido apartamento de
Baudelaire, fiquei um pouco surpreso por não ver prateleiras, armários de vidro
ou qualquer coisa parecida com uma biblioteca, o que não pude fazer segredo.
— Você não tem nenhum livro? — Perguntei-lhe.
— Se tenho?
— Devolveu ele. — Eu tenho alguns.
E abriu, ao meu lado, um armário profundo e
vulgar, onde não estavam retos, alinhados e enfileirados como soldados, mas
assentados sobre as prateleiras, cerca de trinta volumes. Eram velhos poetas
franceses e poetas latinos, especialmente os da decadência, a maioria deles em
edições antigas e preciosas, e magnificamente adornadas com encadernações
realizadas por grandes artistas, mas cujas lombadas eram encadernadas por
costura e podiam se abrir! Por uma associação de ideias que não podia ser mais
simples e natural, o mesmo armário continha algumas garrafas de grandes vinhos
do Reno e taças cor de esmeralda. Quanto aos léxicos, aos dicionários e às
enciclopédias, às miscelâneas de todo o tipo que a lenda se interessou por
cercar Baudelaire, devo dizer que em vão se procuraria o menor vestígio. Como
Théophile Gautier, que sempre quis tratá-lo como seu igual e amigo, e a quem o
poeta de As Flores do Mal respeitosamente persistiu em homenagear como seu
mestre, Baudelaire possuía, de fato, todos os léxicos, mas em sua cabeça, em
seu grande cérebro, não abarrotados em seu apartamento. No entanto, quando ele
traduzia Edgar Poe, podia-se vê-lo usando atlas, mapas, instrumentos
matemáticos cuidadosamente limpos, porque, sempre por amor à perfeição (que era
sua única regra!), ele verificava os cálculos náuticos de Gordon Pym[14],
e queria certificar-se pessoalmente de sua precisão. Mas, uma vez que essas
ferramentas de trabalho tivessem terminado a sua tarefa, o poeta fê-las
desaparecer e recuperou a elegante simplicidade de sua vida como artista.
Então, em sua casa, no Hotel Pimodan, quando lá
fui pela primeira vez, não havia léxicos, escritório, nem mesa com o que é
preciso para escrever, assim como não havia guarda-louças e sala de jantar, ou
qualquer coisa que lembre a decoração dos apartamentos burgueses; nas paredes
do velho hotel, profundas como as de um castelo feudal, teria sido fácil abrir
buracos para armários, fundo o suficiente a fim de esconder os copos e as
louças. Contudo, aqueles que Baudelaire usava eram curiosos e muito bonitos de
se ver; mas ele teria achado um pecado ceder-lhes um de seus aposentos, que
desejava manter só para si. Convidou-me para almoçar e, imediatamente, como por
mágica, a mesa foi posta e uma carne suculenta foi servida aos cuidados de um
criado silencioso.
Baudelaire era em todo lugar e em todas as
ocasiões de um encanto incomparável, sabendo divertir as mulheres, tocá-las com
o seu respeito ao mesmo tempo que lhes mantinha o espírito atento pelas ideias
mais estranhamente femininas, e também sabendo encantar os homens com a sua
ousadia de pensamento, devido ao desprezo por todas as convenções e a uma
absoluta sinceridade. Mas em sua casa, acima de tudo, ele tinha essa graça
especial que os príncipes muitas vezes possuíram no passado, cujo segredo está
um tanto perdido. Dizer que ele sabia deixar o convidado à vontade seria
transmitir imperfeitamente o meu pensamento: o seu gesto, o seu olhar, a sua
maneira de se expressar era, claramente, como a de um senhor pródigo que
ofertasse a sua casa, e ele teria sorrido contente se agradasse ao convidado
pegar joias e objetos de valor e jogá-los pela janela. Durante a noite em que
passeamos, Baudelaire havia me embriagado com a sua conversa mais variada e
diversa do que um belo tecido asiático que se desenrolasse infinitamente; mas,
naquela refeição, era a mim que ele queria ouvir falar e encontrou uma maneira
de me fazer dizer o que era preciso para soar muito superior a quem de fato sou.
Pois este mago sabia nos emprestar a sua força, excitar-nos todas as faculdades
para lhes dar um toque requintado e sutil.
Já foi dito que mulheres, reis e ladrões têm o
privilégio de, em qualquer lugar, se sentirem em casa; por um dom ainda mais
admirável, o poeta possuía essa qualidade maravilhosa de estar por toda a parte
em seu próprio lugar, e de não parecer surpreso ou expatriado; ele podia sair
repentinamente da sala de um grande fidalgo para a mesa de um cabaré, e aqui ou
ali também se sentiria à vontade, sempre protegido pela armadura de sua polidez
irrepreensível. De fato, frequentava cabarés, principalmente aqueles onde
cocheiros e cavalariços passeavam, quando traduzia seu querido Edgar Poe. Como
ele sabia muito bem o inglês, foi para mim um prazer delicado ouvi-lo, por
exemplo, recitar O Corvo com a sua voz firme, pura e musical; mas ele
descobriu, então, que não sabia suficientemente o inglês do povo, e o estudou
naqueles hóspedes da rua de Rivoli, nas mesas pequenas onde se bebe xerez ou
cerveja, e onde encontrou maneiras de civilizar os cocheiros, assim como os
outros homens. Ele sabia como fazer a vida e os seres obedecerem-no, como os
domadores de olhos azuis sabem fazer os leões; mas já tinha viajado bastante e
pago por isso, tendo visto os mares, os continentes e as estrelas, e em muito boa
hora adquiriu um fundo e absoluto desprezo pelo dinheiro. Eu o conheci muito
rico e também relativamente pobre, e sempre o vi, em ambas as situações,
desapegado das coisas materiais e superior aos caprichos das circunstâncias.
Pobre, ao pé da letra, nunca foi, pois quando morreu deixou cinquenta mil
francos em dinheiro vivo, mas é bem verdade que aos vinte e cinco anos já havia
gasto três fortunas – uma prodigalidade infinitamente sábia para um artista que
quer pintar a vida a partir de suas impressões reais e não por ouvir dizer! Com
isso, ele havia aprendido o valor exato de tudo o que se compra ou vende, a
nunca invejar nada, a amar ainda mais as coisas elevadas e ideais, e a manter
no meio dos obstáculos mais inesperados a inefável serenidade daquele que tudo
possui.
Seus trajes, assim como suas maneiras, sempre
foram os de um perfeito dândi. Mas o grande lírico comovido que escreveria o Vin
des Chiffonniers e Le Vin de l’Assassin, como Le Cygne, L’Aube spirituelle e
L’Invitation au Voyage, acreditava que tinha o direito de se misturar em todas
as vidas parisienses, e podia fazê-lo sem o risco de nunca manchar o seu
espírito invencível e apaixonado pelo belo, nem o seu pensamento essencialmente
casto.
Além disso, nesse momento em que Baudelaire brilhava
em sua autossuficiente e orgulhosa juventude, os costumes dos artistas, ainda
muito peculiares, eram bem diferentes daquilo que são hoje em dia. Na Ilha de
Saint-Louis, da qual eles se apoderaram sem dizer nada, porque não pertencia a
ninguém, não era raro ver os Moine, os Feuchères, todos os Cellini[15]
de um novo Renascimento irem uns à casa dos outros sem se dar ao trabalho de
trocar a roupa do ateliê. Sem ofender os olhos de uma multidão ausente, puderam
passear negligentemente no Cais Bourbon e no Cais d’Anjou, tão perfeitamente
desertos que era uma alegria ver a água correr e beber o Sol, e que os amantes
de Molière, Valère e Marianette ou Eraste e Lucile[16], poderiam ter representado ali sua cena
de amor, como em um cenário vazio.
Ora, certo dia, Baudelaire vestido como, de
costume, um fidalgo, mas sem chapéu, coberto apenas por seu cabelo negro, e
tendo substituído o seu casaco por uma camisa, aspirava o sol do verão no Cais d’Anjou,
comendo deliciosas batatas fritas, tirando uma por vez do cone que lhe vendeu a
cozinheira, quando passaram, em carruagem descoberta, distintas damas, amigas
da sua mãe embaixatriz, cujas vestimentas sorridentes se assemelhavam a um
triunfo de flores, e elas muito se divertiram ao ver o poeta petiscar assim
livremente sob o céu. Uma delas, uma duquesa extremamente jovem, cuja beleza
causava rebuliço no subúrbio Saint-Germain, parou o carro e, com a ponta de seu
dedo imperioso e encantador, chamou Baudelaire e acenou para que fosse falar
com ela. Consequentemente, quando ele obedeceu:
— Então, é saboroso — disse a distinta senhora —
isso que estás comendo?
— Prova, senhora! — disse o poeta, que assim
satisfez a secreta inveja das belas passantes, e lhes fez as honras do seu cone
de batatas fritas com suprema graça, como se obedecesse e servisse a corte de
um príncipe. E, enquanto essas Evas saboreavam seu presente inesperado, ele as
divertia tão bem com sua conversa que elas teriam ficado ali até o fim do
mundo; mas ele, muito sábio, soube partir a tempo, executando assim, em pleno
Cais d’Anjou, uma saída cuja dificuldade teria talvez embaraçado o grande
comediante Menjaud[17]
e até o seu irmão, o bispo.
As senhoras conservaram a mais atraente lembrança
de seu lanche ao ar livre; então, alguns dias depois, a jovem duquesa, encontrando
Baudelaire na sala de um velho parente dela, perguntou-lhe se eles não teriam a
oportunidade de comer batatas fritas novamente.
— Não, senhora — respondeu delicadamente o poeta
—, porque elas são muito boas, realmente, mas apenas da primeira vez em que se
come.
Baudelaire,
que foi sincero tanto no pensamento como na expressão, execrava até o desgosto
o romance, a choradeira, a vagueza de espírito, os amores sentimentais e toda
essa poética de brechó. Muito desdenhoso para com tais tolices, só acreditava
no trabalho paciente, na verdade dita em bom francês e na magia da palavra
certa. A sua conversa era clara, precisa e perfeitamente simples, apesar das
histórias que lhe emprestam uma preciosidade refinada e afetações; na verdade,
ele tinha horror à banalidade, bem como à ênfase inútil, e olhava para a língua
francesa como uma querida amante, a quem é preciso acariciar com mãos robustas
e lábios ousados.
Às
vezes, os inocentes Jocrisses[18]
(cuja raça é imperecível!) tomaram ao pé da letra as argúcias um tanto
excessivas por meio das quais o poeta se livrava de um importuno; mas ele não
falava sério com aquelas piadas vivazes, não mais do que o doce e sábio
Théophile Gautier quando ameaçava desenrolar as entranhas até o fundo do jardim
de um visitante obstinado e aparafusado em sua cadeira. E, ainda, os aforismas
irônicos com que ele presenteava estes interlocutores de nada lhes serviriam
como lição para meditar e de regra de conduta. Um daqueles falastrões
bonitinhos de salão, que tinha ido visitar o poeta e vê-lo em ação, como os
ingleses visitam os monumentos, ia, vinha, girava sobre si mesmo com todos os
sinais de uma curiosidade decepcionada, e finalmente disse ao rimador com uma
comiseração queixosa:
— Enfim, vivendo em um retiro tão austero, como
você consegue nunca se aborrecer?
— Senhor, — disse Baudelaire, que começou a jogar
bilboquê com a destreza de um menestrel indiano — é aplicando-me perfeitamente
a tudo o que faço.
Outro papa-moscas, poeta amador, daqueles íntimos
do furacão e que banham a fronte nas estrelas, queria de qualquer jeito que o
jovem mestre lhe explicasse o que é inspiração. — A inspiração, — disse o poeta
secamente — é trabalhar todos os dias! — Por seu amor à clareza, à limpidez, a
uma frase bem colocada e lógica, Baudelaire pertencia à boa e velha tradição
francesa, o que não o impedia de ser também um romântico, porque o Romantismo,
como ele mesmo definiu excelentemente, é a expressão mais recente da Beleza.
Não era sua culpa se às vezes os interlocutores, tomados por uma curiosidade
doentia, se divertissem enfiando muitos alfinetes em sua carne ensanguentada.
O poeta, que nunca pedira nem aceitara nada
para si, tinha ido, certa vez, ao ministério, onde, muito bem recebido, como
era seu direito, facilmente obteve ajuda financeira para um de nossos infelizes
colegas. Como ele queria se retirar, o alto funcionário a quem se dirigiu ainda
o detinha, obviamente querendo lhe pedir algo e não ousando, de modo que
Baudelaire finalmente teve pena dele e o encorajou a falar.
— Pois bem! — disse então o funcionário. — Eu
gostaria de saber porque é que com o seu magnífico talento, com esse dom que
você tem de criar harmonia e de suscitar a mais potente ilusão, você escolhe
temas tão…
— Tão o quê? — perguntou Baudelaire friamente.
— É… — continuou o oficial — Tão atrozes! — E,
corrigindo-se imediatamente — Eu quero dizer: tão… pouco amáveis.
— Senhor, — disse o poeta com uma voz cortante e
afiada como o gume de uma espada — É PARA SURPREENDER OS TOLOS!
Se Baudelaire surpreendeu os tolos, ele
surpreendeu bem mais as pessoas de espírito, deixando o livro imortal em que a
dor e o amor, como essências pungentes, exalam seus perfumes inebriantes,
aqueles versos cujas notas ternas e desoladas fazem vibrar, em comoção, todo o
ser humano de volúpia e de terror. Sua obra, como a própria vida, está manchada
de sangue; mas sua pavorosa púrpura é lançada sobre um rico tecido cintilante,
cujos bordados caprichosos, rútilos de mil fogos acariciadores, fazem sonhar
com as chamas e o resplendor dos astros celestes.
[1] Charles Baudelaire, sa vie et son œuvre, 1869.
(N. do T.)
[2] Charles Asselineau (1820 — 1874) foi um
crítico literário e amigo de Charles Baudelaire. (N. do T.)
[3] NT. Jeanne Duval (1820 — 1862) foi uma atriz e
dançarina haitiana, musa e companheira de Baudelaire. (N.
do T.)
[4] Alexandre Privât d’Anglemont (1815 — 1859). Escritor e jornalista
francês. (N. do T.)
[5] Augustin Eugène Scribe (1791 — 1861). Dramaturgo e libretista francês. (N. do T.)
[6] Pierre Dupont (1821 — 1870). Compositor francês. (N. do T.)
[7] Émile Deroy (1820 — 1846). Pintor francês. Retratou o jovem Baudelaire em
uma famosa pintura. (N. do T.)
[8] Virgílio, Écloga 3. Na écloga os cantores Menalcas e
Damoetas disputam, enquanto Palémon declara a competição empatada.” (N. do T.)
[9] Molho feito a partir
de maionese, mostarda, picles, anchovas e outros condimentos. Muito popular na França. (N. do T.)
[10] Joseph Fernand Boissard de
Boisdenier (1813-1866), pintor francês. (N. do T.)
[11] Antoine Watteau (1684-1721), famoso
pintor do barroco francês. (N. do T.)
[12] Família de banqueiros, que se
estabeleceu em Frankfurt em 1760 e dominaram a economia europeia no século XIX
sendo a família mais rica daquele século. (N. do T.)
[13] Ferdinand Victor Eugène Delacroix
(1798-1863), importante pintor do romantismo francês. (N. do T.)
[14] Personagem do único romance de
Edgar Alan Poe, The Narrative of Arthur Gordon Pym of Nantucket (1838).
Baudelaire publicou sua tradução francesa em 1858. (N. do T.)
[15] Antonin-Marie Moine (1796-1849) e
Jean-Jacques Feuchère (1807-1852) foram importantes escultores do período, de
um grupo de artistas que participaram também Triqueti, Fauveau e Duseigneur.
Banville aqui compara tais artistas em status com Benvenuto Cellini (1500-1571), importante escultor e ourives da
renascença florentina. (N. do T.)
[16] Molière (1622-1673) foi um
importante dramaturgo francês. Os nomes Valère, Marianette, Lucile e Éraste são
personagens da comédia Le Dépit amoureux.
(N. do T.)
[17] Jean-Adolphe Granet
dit Menjaud. Ator francês (1795-1864). (N. do T.)
[18] Um dos muitos tipos
de valete bufão, Jocrisse é particularmente a personificação popular da tolice
e da estranheza. (N. do T.)
Théodore de Banville
(1823 – 1891) foi um dos mais famosos poetas franceses do século XIX. Autor de vasta obra literária, influenciou uma plêiade de poetas. Nomeado por Mallarmé como “a própria Lira”, foi o último dos românticos e um dos tetrarcas do Parnaso francês.
Henrique Nascimento
Nasceu em Olinda, Pernambuco. Poeta e tradutor, colaborou com algumas revistas literárias como Mallarmargens, Piparote e Ruído Manifesto, e com o Jornal RelevO, de Curitiba. Seu primeiro livro, Pássaros na noite, está no prelo da Editora Mondrongo.