As paixões envolvidas no ingresso de Castro Alves no teatro – a causa abolicionista, o nacionalismo e o amor pela atriz Eugênia Câmara – transparecem em muitos momentos na escritura e sedimentam o drama Gonzaga, ou a Revolução de Minas. O Teatro de Santa Isabel, no Recife, um dos grandes palcos abolicionistas do final do império, veria sob aplausos a recitação cheia de lirismo e epicidade de um drama diretamente alinhado com os propósitos morais de seu tempo, ou pelo menos daqueles dos discípulos mais progressistas da liberdade brasileira. Essa “exuberância de poesia” seria, para José de Alencar, culpa de um espírito juvenil, mas que não lhe anularia a “prodigalidade soberba da imaginação”; Machado de Assis reservaria um lugar para o autor do drama nas letras nacionais, um “belo futuro”[2] que o poeta jamais poderia cumprir, por sua morte precoce, em 1871.
Escrevendo um drama histórico, Castro Alves alinhava-se com aqueles que se dedicavam à formação de um teatro nacional, e acima de tudo, à escrita de uma história coerente com os passos calcados no futuro da recente nação. Os românticos olhariam o desenrolar da história por esse viés de comprometimento. Narrar o passado pelo simples amor ao passado é algo que não compete à alma romântica: seu olhar é no futuro, mesmo que um futuro simulado nas páginas dos dramas históricos. E tendo como apoio um tempo presente idealizado em alguns aspectos, repudiado em outros, Castro Alves não escaparia ao dualismo de ver seu tempo como limitado, embora pleno de possibilidades.
O personagem central do drama, o poeta árcade e visionário Tomás Antonio Gonzaga, veria seu senso de dever permeado de idealismo para com uma causa nacionalista conduzi-lo à condenação e ao degredo. Confundindo o amor pela pátria e a sua paixão individual, diante da queda, seu único desejo é o de suscitar ao menos a lembrança, ainda que pálida, das tentativas heroicas silenciadas pela violência de um Estado opressor: “é uma coisa muito pura… Uma memória como a de um povo!”[3]. Envolvido com o projeto de emancipação mineira, engaja-se de forma racional e sentimental com um projeto nacionalista avant la lettre em conflito com a necessidade histórica do século 18.
Na concepção de uma peça histórica oitocentista, o autor dramático precisa não apenas elencar dados históricos, mas interpretá-los, munindo-se do sentido que sua época empresta à história, com o objetivo de representar diante do espectador ou do leitor os acontecimentos que servem de base à sua peça. Os críticos e autores dramáticos dessa época tendiam, porém, a ver com maiores reservas o espaço legítimo ao exercício da imaginação em peças históricas. Ainda em sua apreciação do poeta dos escravos, como crítico de teatro, Machado de Assis entenderia que “para avaliar um drama histórico, não se pode deixar de recorrer à história; suprimir esta condição é expor-se à crítica e não entender o poeta”[4]. Porém, ele também não deixaria de reconhecer o enriquecimento poético e histórico do uso de uma larga imaginação do jovem poeta-dramaturgo, plena de projetos futuros e entusiásticos, que jamais veria concretizados, para o Brasil.
É possível ver pelo prisma dos quatro atos do drama – “Os escravos”, “Anjo e Demônio”, “Os mártires”, “Agonia e Glória” – em um viés interpretativo que visa não dissecar o drama, mas compreendê-lo em seu próprio tempo, quatro bases principais de um teatro que não buscava escapar das convenções do seu tempo (como quase nenhum teatro, aliás, que tão frequentemente busca respeitar o contrato estabelecido com seus espectadores) e no qual um discurso histórico-ficcional se construía, como explicação não apenas do teatro, mas de toda história nacional. Assim, ao concentrar seu primeiro ato em torno da ideia do abolicionismo, Castro Alves justificava a tese de que nenhuma revolução seria possível no Brasil sem antes a justa humanização daqueles que haviam construído com as mãos um país. O ex-escravo Luiz não é apenas amigo fiel de Gonzaga: há um sentido coincidentemente paternal e servil em sua ligação com o poeta; é ele também que percebe e pressente as traições de Silvério dos Reis, demonstrando uma percepção da vida mais aprofundada e humanizada do que outros personagens em cena. Essa concepção de personagem incomodaria a um crítico teatral do Diario de S. Paulo, que em 1868 observaria sobre o escravo Luís: “ele discorre com tanta proficiência, expressa-se com tanta propriedade, usa de comparações tão filosóficas, tão poéticas, que deixa facilmente descobrir-se o dramaturgo fazendo esquecer o personagem.”[5] Da mesma forma, é na escravidão que a ruína dos heróis estaria assentada, pois a escrava Carlota é forçada a servir de informante aos desígnios de Silvério e do Governador Visconde de Barbacena, inimigos dos inconfidentes.
O segundo ato, melodramático por excelência, “Anjo e demônio”, assinala essa convenção teatral, não apenas de maneira interna ao desenvolvimento do drama, mas se assim se puder dizer, externa ao seu sentido histórico. Acontece que o melodrama tem sido uma chave explicativa bastante pertinente na leitura das peças históricas, e em vários aspectos dos estudos sobre o teatro brasileiro em geral. É impossível perpassar os processos de devir e esgotamento de um teatro que se faz como necessidade política sem se voltar em primeiro lugar à satisfação do público teatral. As águas sempre movimentadas do melodrama também desaguariam nos gêneros históricos. Os heróis, sem muitas opções e sem poder cumprir muitos requisitos para as tomadas de ação mais enérgicas, deparam-se, contudo, com dois polos opostos, o bem e o mal.
É de fato essa a ambiência moral e estética da peça histórica brasileira. Igualmente, o simples fato de o historiador francês Michelet[6] relacionar um certo tipo de caráter a seu ofício como historiador – tendre, studieux et bienveillant[7] –, terminaria traçando as linhas de força da historiografia oitocentista em direção ao melodrama. É, sobretudo, seu olhar não dialético, quase maniqueísta do processo histórico, que o faria coincidir com um modo de elaboração que Hayden White evoca como o “mito da estória romanesca” e que, no autor da Histoire de France, está ligado a um processo histórico entendido como “uma luta da virtude essencial contra um vício virulento”, ou em outras palavras “entre tirania e justiça, ódio e amor, como momentos ocasionais de conjunção”[8].
O leitor, sobretudo o estudioso de teoria teatral, certamente identifica nesses termos “a luta entre o bem e mal absolutos”[9] tão característica à estética e à moralidade melodramáticas, essa “escola do ideal”, nos termos de José de Alencar. No final das contas, o melodrama é entendido aqui como conteúdo, como um modo de elaboração ficcional próprio às formas dramáticas, mas principalmente como um meio instituído ou convencional de trabalho autoral da história pela imaginação. Assim, o embate entre a doce Maria Dorotéia – a Marília de Dirceu – e o terrível Visconde de Barbacena, não é apenas o embate entre o amor puro e verdadeiro do poeta contra a sordidez de um vilão, mas é o embate natural ao desenvolvimento positivo da história do Brasil.
Por fim, os dois últimos atos, “Os mártires” e “Agonia e Glória”, celebram, ironicamente, o único fim possível a qualquer tentativa heróica fora de seu tempo histórico: a morte. Essa morte que se apresenta desde as primeiras páginas do drama, seja na descrição dos sofrimentos da esposa e filha perdida do escravo Luís, ou nos desejos suicidas cedo anunciados pelo poeta Cláudio Manuel da Costa, ou ainda no amor profundo entre Gonzaga e Maria, que não encontra espaço para a concretização neste mundo. De fato, a grande personificação de um ideal heroico no romantismo brasileiro não encontra em Gonzaga ou Tiradentes suas personificações. Seu heroísmo possível é o do mártir. Em sua visão calcada no futuro, uma vez que as resoluções políticas brasileiras se concentram em torno do 7 de setembro de 1822, não há razões para qualquer tentativa heróica antes desse tempo. O modelo político objetivamente representado por D. Pedro I, o mais legítimo herói da Independência, diante do qual se eclipsam todos os outros, mediador fundamental da relação entre as peças históricas românticas e seu compromisso com o Estado.
O já aludido anacronismo de alguns dos heróis brasileiros – dignos em suas intenções, mas errados substancialmente enquanto sujeitos de um tempo histórico inadequado –, provém em muito do desequilíbrio desse ideal de subjetividade moderada típico dos gêneros épicos e históricos:
GONZAGA: — […] Nós sonhamos com a glória, com o amor, com a felicidade! Que importa?! […] Oh! é uma coisa muito pura… um amor como o teu! uma memória como a de um povo!… Ah! minha pobre pátria! ah! minha pobre noiva! amanhã nós todos seremos livres! […] O carrasco me sagrará mártir […] quando se tem a eternidade do amor, de uma nação, de uma mulher e de Deus… o homem caminha para o cadafalso como para um leito de núpcias… Não chores, Maria, adeus! […] E agora um último pedido… fala de mim às crianças desta pobre terra, lembra aos pobres cativos, que ficam, o nome de nossa pátria, dize-lhes que eu morri por ela, e que eles vivam para ela.[10]
O herói, por vezes, impossibilitado de agir objetivamente em sua própria defesa, arma-se de uma retórica comovida e satisfaz-se com a enunciação de seu próprio sofrimento. A imagem aproxima-o daquilo que, para Hegel[11], “é pleno de sentimento, comovente, […] porque, por um lado. a imagem dos sofrimentos que ele projeta e que dói a ele mesmo, expõe as circunstâncias, o puramente objetivo, ao passo que, por outro lado, o que o move e impulsiona não aparece como querer pessoal, como resolução subjetiva, mas como necessidade”. Nesse sentido, o lamento épico-lírico de um Gonzaga vencido materializa um heroísmo problemático, do ponto de vista de sua efetivação, já que qualquer tentativa seria paga com a vida, em sentido físico e moral. Essa morte, desprovendo-o de sua função heróica no presente, viria à tona insistentemente, como exemplo moral para a nação e requisito para a abertura de um novo ciclo de heroísmos, fundamentados igualmente nos tempos futuros.
Jéssica Cristina Jardim
É ensaísta e pesquisadora. Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), foi professora de história do teatro na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e pesquisadora residente na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM-USP). É autora do livro “Dramaturgos, críticos e ratos: reflexões sobre o teatro em Edgar Allan Poe” (Editora UNESP, 2020).
[1] Jéssica Cristina Jardim é ensaísta e pesquisadora. Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), foi professora de história do teatro na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e pesquisadora residente na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM-USP). É autora do livro “Dramaturgos, críticos e ratos: reflexões sobre o teatro em Edgar Allan Poe” (Editora UNESP, 2020).
[2] Carta do Exm. Sr. Conselheiro José de Alencar ao Illm. Sr. Machado de Assis. In: ALVES, Castro. Gonzada, drama histórico brasileiro. Rio de Janeiro: A.A. da Cruz Coutinho, 1875.
[3] ALVES, Castro. Gonzaga, drama histórico brasileiro. Rio de Janeiro: A.A. da Cruz Coutinho, 1875.
[4] Carta do Illm. Sr. Machado de Assis, em resposta, ao Exm.Sr. Conselheiro José de Alencar. In: ALVES, Castro. Gonzaga, drama histórico brasileiro. Rio de Janeiro: A.A. da Cruz Coutinho, 1875.
[5] FARIA, João Roberto. Castro Alves, o dramaturgo abolicionista. In Revista brasileira (Academia Brasileira de Letras), Fase IX, Janeiro-Fevereiro-Março 2021. Ano IV, nº 106.
[6] Citado por DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
[7] “terno, estudioso e benevolente”.
[8] WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1992.
[9] BRAGA, Claudia; PENJON, Jacqueline. Apresentação. In THOMASSEAU, Jean-Marie. O melodrama. São Paulo: Perspectiva, 2005.
[10] ALVES, Castro. Gonzaga, drama histórico brasileiro. Rio de Janeiro: A.A. da Cruz Coutinho, 1875.
[11] HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética. Vol.IV. São Paulo: Edusp, 2014.