No final do século XIX, Darwin escreveu uma mesma carta para uma centena de naturalistas espalhados pelos lugares mais remotos do planeta, perguntando se o povo tal ria quando alegre e chorava quando triste. Ele havia descoberto o primeiro universal humano, característica ou comportamento que não depende de determinações socioculturais. Hoje se conhecem centenas. Se há centenas de universais humanos, nem tudo é cultural ou socialmente determinado ou determinável. Rousseau, o deus dos socioculturalistas, estava errado. Radicalmente errado: “La nature a fait l’homme heureux et bon, mais la société le déprave et le rend misérable” – “A natureza fez o homem feliz e bom, mas a sociedade o corrompe e o torna infeliz” (daí a razão das utopias). A premissa de Rousseau é indemonstrável. Pode-se afirmar que natureza fez o homem (e a mulher) bípede, mas bom e feliz, não. Daí a leviandade de Rousseau – reforçada pela segunda metade da sua equação verbal. Se a natureza não fez o homem feliz (de resto uma paráfrase pobre do Adão nascido no Éden), a “sociedade” (que sequer existe no singular) não o torna o contrário do que não era. Já os universais humanos indicam fortemente que humanos, como os demais animais, são como os demais animais. Pode-se treinar extraordinariamente um cão, mas não se pode fazê-lo miar: os universais indicam ser impossível indivíduos e sociedades moldarem livremente a si mesmos ao sabor de sua vontade (daí o fracasso das revoluções; daí utopias serem utopias).

Há outros universais. Por exemplo, o de Tolstói: “Se você quer ser universal, comece por pintar sua aldeia”. Uma reafirmação implícita dos universais humanos.

Tudo isso coloca alguns problemas para certa pós-antropologia (que nega radicalmente qualquer universalismo), para o identitarismo (idem) e para o neorromantismo hiper-rousseauniano que move e comove o pós-esquerdismo pós fim das utopias. Outro problema é que, se as utopias morreram, torna-se necessária uma nova utopia. Tão necessária quanto impossível, pelo mesmo motivo de estarem todas mortas.

Enquanto o malfadado universalismo iluminista sobrevive. Se ainda não morreu, não foi por falta de empenho de seus inimigos. Inimigos, não adversários. Porém o universalismo iluminista não é, apesar de tudo, “eurocêntrico”, “heteronormativo”, “colonialista” etc., ou, com certeza, não é apenas ou principalmente isso, porque, entre outras coisas, foi um dos frutos do grande acúmulo de conhecimentos verdadeiramente universais que resultaram da descoberta empírica do mundo a partir do século XV. A terra era redonda. As leis da física de Newton se aplicavam em toda parte. O sol sempre nasce a Leste. As espécies se transformam em novas sob pressão seletiva do ambiente. Todos os humanos riem quando alegres, e todos possuem pensamento racional – e também irracional (daí o apelo das utopias).

Além disso, o mundo é hoje, mais do que nunca e mais do que nada, a aldeia global prevista por McLuhan. Não apenas pela globalização capitalista, ou pela globalização do capitalismo (da qual sequer a China escapa), mas também pela universalização da internet. Juntando a aldeia global de McLuhan, aldeia universal, à aldeia local de Tolstói, aldeia universalista, a aldeia do mundo é um fractal: uma figura geométrica cuja totalidade é capturada e reproduzida e produzida por cada subunidade em todos os níveis, do micro ao macro. Baudelaire, o primeiro poeta moderno, era um flâneur, um passante do mundo da cidade moderna. Régis Bonvicino é um errante da cidade-mundo contemporânea. Ou do mundo-cidade. Das cidades do mundo – que são aldeias mcluhan-tolstoianas contendo em si o local-universal de sua reprodutibilidade e de sua reprodução. Inclusive por esta poesia: várias são cenário e objeto de seus poemas (Régis Bonvicino, A nova utopia, São Paulo, Quatro Cantos, 2022 [antecedida, em 2020, por Deus devolve o revólver, 16 poemas do novo livro na forma de um libreto e da sonorização em streaming – cf. pp. 1545-155).

O fim, se não dos universalismos, das utopias, é o fim do futuro (não como entidade temporal, mas político-volitivo-imaginativa). É o império inescapável do presente. A extensão do presente ao futuro possível. O presente é o futuro.

Esse presente do futuro, que também atende pelo nome de “a grande confusão contemporânea”, é o único tema possível de uma poesia que escape do tardolirismo impressionista de um eu lírico apequenado pela presença agressiva e pervasiva do mundo, e do neoengajamento ideológico de uma poesia que se pretenda militantemente política, mas na verdade é apenas militante e ideológica. E a ideologia é um veneno artístico (como já se disse, quem quer enviar uma mensagem deve usar o celular).

um mundo, o mundo do presente e o presente do mundo, feito de múltiplos universais locais, ou de locais universais. É esse mundo tolstói-mcluhaniano de aldeias universalistas espalhadas pelo e espelhadas no mundo-aldeia que se revela a nova utopia de um presente estendido e de um futuro morto. Nova utopia que é, afinal, a utopia primeira. Pois o sentido original da palavra criada por Thomas More, não por acaso, no século XVI (início da modernidade), é “não lugar” (u-tópos), ou lugar nenhum. A utopia não é um tempo, mas um lugar. Ou melhor, nenhum lugar. O lugar-nenhum que é um lugar qualquer do mundo contemporâneo. Nenhum lugar, porque todos os lugares. Por pura culpa do mundo, digamos, a poesia de Bonvicino é universalista.

Há certa grandeza paladiana em ainda sê-lo. Paladas de Alexandria (século IV) foi o último poeta da Antiguidade greco-romana. De fato, ainda em seu tempo de vida a cultura greco-romana seria militantemente solapada e cancelada por uma nova e agressiva força político-cultural e ideológico-religiosa, o cristianismo. Paladas viu-o.

 

Acaso estamos mortos e só aparentamos

estar vivos, nós gregos caídos em desgraça,

que imaginamos a vida semelhante a um sonho,

ou estamos vivos e foi a vida que morreu?

 

(trad. José Paulo Paes)

           

            Régis Bonvicino vê a vida contemporânea semelhante a um pesadelo. Mas vê-la não é tudo. Na verdade, não é nada, se se persiste em aprendê-la e apreendê-la pelo instrumento preciso (e necessário, porque preciso) dessa poesia. Como dito, não há nenhum lugar para tardos eu-lirismos e neomilitâncias de arte engajada (em sua própria militância) em uma poesia toda tomada pela totalidade fragmentária de um mundo incontornável. Totalitário em seu sentido mais lato.

A poesia de um mundo-fractal é uma poesia metonímico-concêntrica: concentra o olhar em um fragmento-lixo de um beco sujo de uma avenida cinza de uma cidade cloaca, e, passando pelos humanos esgoto-esgotados que, poluídos, a poluem entre tantos outros detritos, escreve e descreve closetravellings de um filme pós-catástrofe. A nova utopia, o novo lugar nenhum, o novo não futuro não é o futuro da catástrofe, ou a catástrofe futura, mas a catástrofe do presente. A presença sem futuro da catástrofe.

No entanto, há também nessa afirmação, aparentemente, algum neorromantismo. O romantismo histórico, como se sabe, representou, em síntese, uma recusa da modernidade. Recusa dela e do que a caracteriza: o capitalismo, a revolução industrial, a urbanização, a reprodutibilidade técnica, a própria técnica, a ciência, o racionalismo e last, not least, o universalismo. O romantismo era nacionalista (na verdade, étnico-racialista), anti-iluminista, subjetivista, naturista, primitivista. Qualquer semelhança com ideologias contemporâneas não é mera coincidência: desde que surgiu, a modernidade ocidental (ou seja, a modernidade) esteve sob variados e invariáveis ataques. Entre muitas outras coisas, porque nela, como disse Marx, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Ou ainda, como sintetizou Schumpeter, porque se trata do domínio da “destruição criativa”. A modernidade não é para amadores (ou saudosistas). Incluindo poetas.

A poesia de Bonvicino, desde antes de A nova utopia, mas superiormente aqui, enfrenta e confronta o mundo contemporâneo – o que não significa, como concluiriam ou gostariam os apressados, “denunciá-lo”. Fazer poesia engajada é fácil. Basta escolher a causa “certa” e amontoar clichês afirmativo-reivindicativos. Há outros para fazê-lo.

O primeiro poema de A nova utopia, “Arte” (pp. 9-11), lembra, sintático-estruturalmente, “Águas de março”, de Tom Jobim, uma das composições superiores da Bossa Nova. Tanto a letra quanto o poema são compostos de uma sucessão de frases nominais iniciadas pelo verbo existencial ser no presente do indicativo: “é”. Ambos se estruturam, portanto, pela figura de linguagem da anáfora, a retomada da mesma palavra no início de frases sucessivas. Recurso retórico poderoso, a anáfora prenuncia algo que há de ser dito, enquanto o adia. E esse adiamento reiterado e reiterante alimenta sua expectativa. No caso da canção, trata-se da resolução-elucidação “São as águas de março fechando o verão / é a promessa de vida no teu coração”. No caso do poema, trata-se do silêncio. Do vazio. Depois da última anáfora, que é o último verso, não há nada. Se a canção e o poema começam abruptos, in media res (“no meio da coisa”), a canção tem um fecho que a resolve, enquanto o poema não tem fecho nem resolução. Começa abrupto para terminar abruptamente: “É o relevo das luzes de uma torre / no dia seguinte. […] É um artista se entregando à polícia”.

A neutralidade semântico-formal da frase nominal, na canção, serve para dar modernidade a um discurso lírico implícito. De fato, o pronome eu não aparece, nem é, portanto, o previsível sujeito das frases “emotivas” que dominam a canção a popular.  “É um resto de toco, é um pouco sozinho / É um caco de vidro, é a vida, é o sol”. É lírico. Mas de um lirismo comedido, algo blasé, característico da Bossa Nova, característica, por sua vez, de um tempo racional-otimista. No poema, tais recursos estão, ao avesso, a serviço de uma seca brutalidade semântica, o que a acentua, e da obliteração de qualquer laivo de otimismo: “É um relógio sobre uma lápide”. A linguagem mimetiza os tempos.

A frase nominal domina a linguagem poética de A nova utopia. Ou melhor, as frases nominais, em todas suas variações. “Pássaros, céu agora limpo / a barraca de pé / como a garota, entre os detritos” (“Imagens”, p. 71 [a rima toante – limpo/detritos – impera no aspecto sonoro, ao lado da quase-paronomásia – ver adiante]). “Em frente um prédio art déco / janelas abertas, o lustre da sala” (“A deux pas, tout est là”, p. 75). Como se a vida urbana, onde nada é paisagem no sentido original, tampouco fosse o cenário de qualquer existência, pois seus atores não atuam (daí a não necessidade de verbos de ação), e são, de fato, semelhantes a coisas (“a barraca de pé / como a garota”). Às coisas. Enquanto os poemas são como écfrases (descrição escrita de uma obra visual) da desolação congelada dos quadros de Edward Hopper. Se, para Sartre, os outros são o inferno, para Hopper e Bonvicino, são o limbo. Onde todos estão.

Os poemas de A nova utopia (do novo lugar nenhum) são poemas do limbo. “A vida parou / ou foi o automóvel?”, perguntava Drummond há um século. Não, pode afinal responder Bonvicino: foi a história. Não porque ela tenha chegado ao fim da disputa pelo futuro anunciado por Fukuyama. Mas pelo próprio fim do futuro (como projeto desejável, concebível ou defensável). Daí, também, a dominância das frases nominais, demonstrando a maestria de suas relações e correlações morfossemânticas: tais frases não têm verbo, logo, não têm tempo.

A nova utopia é, para além do título do livro, seu leitmotiv. Um tema com variações: são 14 poemas com o mesmo título, que perpassam todo o livro, como uma linha temático-melódica, da qual os demais poemas de permeio são o contraponto e o complemento.

Se não há futuro, não há utopias. Se não há utopias, não há futuro. Ou revolução. Daí a nova utopia ser singular: não uma nova utopia para ocupar o lugar das que morreram, mantendo sua função, mas sim um novo tipo de utopia para ocupar o lugar do tipo extinto. Esse novo tipo de utopia, essa nova utopia sem futuro nem revolução, não é o seu contrário (uma distopia), mas a afirmação de sua anulação: a antiutopia. Uma utopia reformista. Uma utopia pragmática. Uma utopia incremental. Uma utopia à la carte. Uma utopia apequenada. Uma desutopia. A utopia possível da impossibilidade de utopia.

 

A nova utopia é uma borboleta negra, desatenta, com olhos exuberantes. A nova utopia é a favor da proteção implacável dos animais. A nova utopia é inclusiva, participativa. A nova utopia é o coro afinado dos descontentes. É um ex-guerrilheiro, de porte avantajado, homem forte do governo. A nova utopia tem informações privilegiadas, disponíveis. É um ex-leproso. A nova utopia rechaça a figura de Nossa Senhora se masturbando. A nova utopia defende os direitos das trabalhadoras do sexo. A nova utopia comunga, com moderação, ideais materialistas. A nova utopia morre de pé. É, ao mesmo tempo, um duty free e um detox financeiro. A nova utopia é nosso dever como cidadãos […] (“A nova utopia (1)”, p. 21).

 

A neutralidade formal de uma descrição/construção por acúmulo de observações/evidências, sem qualquer análise ou interpretação, estrutura-se por paralelismo sintático: não há coordenação e muito menos subordinação. Há parataxe. Não se trata, apesar da disposição gráfica, da indefectível “prosa poética”, mas pura e simplesmente de poesia moderna, ou seja, modernista. Trata-se de versos livres (sem métrica pré-definida) e brancos (sem rimas), com o ritmo marcado e marcante das sucessivas frases diretas, curtas e substantivas. “A nova utopia morre de pé. É, ao mesmo tempo, um duty free e um detox financeiro. A nova utopia é nosso dever como cidadãos”. Para não falar da profusão de aliterações e assonâncias: “duty free / detox financeiro”; “tempo / financeiro”. Sobre tal arcabouço sintático-formal, a profusão caleidoscópica de uma imagética que oscila entre o brutalismo, a ironia e o cinismo, e mimetiza o realismo enquanto o demonstra impossível, insatisfatório, insuficiente – apesar de incontornável. Porque a nova utopia é realista, apesar ou por causa da realidade imediata.

O deslugar do não lugar (utopia) no mundo contemporâneo marca, ao mesmo tempo, não somente o fim do futuro como também a impossibilidade da “fuga campestre”, do idílio bucólico, da fantasia naturista que era a alternativa e o complemento da mudança do mundo pela utopia revolucionária. Se afinal não se pode mudar o mundo (ou enquanto não se pode), mude-se do mundo. Da cabana de Thoreau às comunidades hippies, passando pela mitificação da floresta germânica no romantismo idem. Não há mais florestas intocadas. Não há mais nada intocado. Não há mais saídas. Só ruas, becos, avenidas. A nova desutopia é uma metáfora-metonímia da urbe e do orbe.

Mas se, apesar de tudo, ou por causa de tudo, há uma nova utopia, também há um novo utopista. Daí o novo utopista compartilhar com a nova utopia o corpo da série de poemas com este título. Mas não se trata de um personagem descritível. Se a nova utopia se dá a (não)ver via frases nominais, o novo utopista é flagrado, não exatamente em ação, mas em situação. Se a nova utopia lembra o limbo de Hopper (revisto via “pinturas negras” de Goya), o novo utopista lembra as teratologias de Brueghel: “O novo utopista caça dinossauros / fala ao ouvido de dragões / desliga as luzes / cavalga no lombo de um rato / faz selfies em ataúdes / o novo utopista / sofre de mania” (p. 137).

Assim como a poesia contemporânea. Uma de suas muitas manias, todas inócuas – por definição –, é a mania do haicai. Verdade que já foi mais forte. Mas ainda marca presença entre outras marcas maníaco-inócuas da poesia atual, como a poesia identitariamente correta. O “haicai” que por aqui se pratica é uma contrafação nascida na França no fim do século XIX, então tomada pela moda do “niponismo”. Como o Brasil estava então tomado pela mania do francesismo, o “niponismo” francês veio de roldão. Uma das figuras de destaque na criação dessa aberração medíocre que foi o “haicai” franco-parnasiano brasileiro atende pelo nome de Guilherme de Almeida, poeta tão parnasiano quanto afrancesado (além de medíocre em mais de uma língua). Em suma, o haicai não é uma forma-fórmula, não tem 5-7-5 sílabas (a língua japonesa não comporta nossa divisão silábica), e, para não estender demais, sequer é um poema, entendido como objeto de criação e, principalmente, de criatividade verbal. O haicai só é razoavelmente compreensível como uma variação verbal da cerimônia do chá, entre outras comparações possíveis. Trata-se de um gesto religioso, não artístico; de um dos diferentes instrumentos de desegotização budista. O “haicai” brasileiro, na imensa maior parte das vezes, é apenas um terceto banal (em outras, traz alguma “sacada” pseudoesperta – ignorando que então não se trataria de um haicai, mas sim de um senryu). Paradoxal e involuntariamente, é apenas nessa extrema banalidade que se aproxima do haicai que merece o nome (ele deve ser “neutro” – antivirtuosístico –, segundo Bashô).

Bonvicino desrespeita a regra de Bashô. Ou não. Pois faz uso intenso e extenso da “sagrada” e consagrada forma-fórmula do “haicai” franco-parnasiano brasileiro para criar o anti-haicai definitivo (“Haiku”, pp. 111-112). Ele traz todos os elementos da fórmula, o terceto, a métrica e, num gesto de extrema ironia, o kigo, ou “marca de estação”. Chega a citar Buda e outros semantemas orientais, como “jade”. Mas tudo em modo corrosivo e corroído. Seu “haicai” é uma contrafação da contrafação que é o “haicai” brasileiro, lembrando a “sósia da cópia” de outro livro do autor. E o mais importante: a exiguidade da fórmula é, então, posta a serviço da linguagem e da temática (ou seja, da tessitura morfossemântica) que dominam o livro, levando-as a um de seus momentos mais agudos.

 

Pedra no cachimbo / Estação da Luz: porrada / Verão, sol lilás // Pedra, narguilé / Doce como mel: porrada / Verão, o sol âmbar // É o Incrível Hulk / Um avião nos pés: porrada / Janeiro, sol púrpura // Uns tragos na lata / De asas já nos pés: porrada / Março, sol turquesa // Cachimbo, cristal / Braços alados, porrada / Março, um raio fúcsia // Lata sem anel / O anu bica o olho do noia / Isqueiro na dobra // Pedra no cachimbo / Arco-íris nos pés, porrada / Dezembro, sol sépia // Canudo, Yakult / Mãos lixam o céu, porrada / Março, sol magenta // Cachimbo na roda / Garras de tigre, porrada // Janeiro, sol jade / Em nome de Buda, / Nada obstante uma brisa / Verão, sol sem cor // Cavalo, porrada / O tubo de pvc / Outono, sol ágata

 

Outra mania inócua da poesia contemporânea é o “poema em prosa”, ou, alternativamente, a “prosa poética”. Trata-se de um dano colateral do fim das formas fixas pelo modernismo, junto ao mito democratista do “fim das fronteiras” entre os gêneros (literários), além da mitificação da obra menos importante de Baudelaire, a coleção de pequenos contos banais que ele julgou por bem intitular Pequenos poemas em prosa. Não existe água seca – palavras não tem poder criador, ao contrário da crença dos povos ágrafos e dos indivíduos idem. Muitos temem o uso da palavra diabo, por exemplo, que teria o “poder” de presentificá-lo. Seria o fim das floriculturas: bastaria repetir a palavra flor dez vezes para encher um vaso. Não cabe aqui, literalmente, demonstrar por que a linguagem poética e a prosaica são excludentes (cf. “A razão da poesia”, acessível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/88).

Obviamente, a prosificação da poesia não pode ser obtida pela mancha gráfica, assim como a poetização da prosa não o pode pelo recorte arbitrário e o margeamento à esquerda (o recurso mais usado pela pobre poesia brasileira contemporânea). Elas não podem ser obtidas. Isto dito, “Make it old” (pp. 101-104) é uma prosa não-tão-curta inserida em um livro de poemas. Não é “prosa poética”. Tampouco prosa banal. Ao contrário. É extremamente complexa.

A arte engajada (na propaganda e na defesa do socialismo) morreu com o fim da utopia socialista, com o fim da URSS. Mas renasceu recentemente, na forma da arte identitariamente correta. Incluindo, agora, além do receituário para as novas obras, o julgamento ideológico das obras e dos autores do passado. Tais julgamentos costumam ser, em mais de um sentido, unilaterais. Uma obra como Lolita é condenável mesmo que Nabokov não tenha cometido nenhum crime.  Mas a obra de Heidegger não é condenável (ao menos, não é condenada) apesar de sua colaboração com o nazismo. Tampouco a de Pound, apesar de sua contribuição ao governo de Mussolini. Na verdade, a despeito de tudo, nos dois casos e em outros semelhantes, buscam-se meios de e motivos para escusar as biografias dos autores, visando escudar suas obras (Heidegger é um dos darlings do “relativismo cognitivo” – Rorty, Latour, Viveiros de Castro etc. –, por sua vez um darling neoepistemológico, digamos, do identitarismo). Mas se a relação da arte engajada e de seus ideólogos com seu próprio engajamento (e com aqueles que nele “falham”) é rasa, a realidade não o é. A arte de um simpatizante do fascismo é fascista? Pode ser isenta de fascismo? A arte fascista era neoclássica. A obra experimental-vanguardista de um simpatizante do fascismo é neoclássica? A obra realista-socialista de um comunista é revolucionária? Bonvicino não responde a nada e nada pergunta em “Make it old”, centrado na conhecida “questão Pound”. A partir da inversão de seu famoso mote (“Make it new”, tornado um clichê vanguardista pelo concretismo), o poema se apodera metonimicamente do que a Pound e sua obra se relaciona e/ou é relacionado, num denso liquidificador caleidoscópico em que se imbricam múltiplas referências e camadas de sentidos, numa prosa curta extensamente poderosa, deflagrada pelo fato incidental de uma viagem à Itália.

A nova utopia tem 67 poemas e 156 páginas, incluindo, para seguir com a referência a Pound, muitos punti luminosi. Neles fica evidente que Régis Bonvicino se tornou aquilo que muitos poetas almejam, e muito poucos logram: um fabbro, um fazedor – de linguagem. O criador de uma linguagem poética particular – que prescinde de assinatura para a identificação do autor; que é a própria identificação dele; e, para além da construção de uma obra, é, ou era, antes da completa banalização do termo, a marca por excelência de um poeta. A poética bonviciniana está presente em todo o livro, obviamente – mas, como dito, é ainda mais evidente, por definição, em seus punti luminosi, como “Mare nostrum” (pp. 45).

O Império Romano era também um império marítimo. Engana-se quem o imagina como o espaço geopolítico equivalente à Europa atual. Seu centro não eram os chamados países europeus centrais, como França e Alemanha. Seu centro era o Mediterrâneo. E ele sequer era um império europeu, geograficamente. Era europeu e africano. Grosso modo, o sul da Europa era seu norte, e o norte da África, seu sul. Entre Cartago, na atual Tunísia, e Alexandria no Egito, o norte da África não era árabe, mas romano (os árabes apenas sairiam de sua Península Árabe de origem, para invadir, conquistar e colonizar grandes partes do então fragmentado Império Romano – e da Europa – a partir do século VIII d.C.). Mare nostrum, “nosso mar”, era o nome romano do Medi-terrâneo (“o que está no centro da terra”). Dessa densa referência onomástico-geo-histórica, plena de ressonâncias contemporâneas, o “lago romano” é recapturado no poema como uma sinédoque da Europa atual, que se revela, afinal, uma verdadeira sucessora do Império: mais uma vez, a África (também) é aqui.

O poema começa com um verso-porrada: “O vento atira fuzis na cara”. E dá a rever esse elemento central da linguagem poética de Bonvicino que é a frase curta, seca, direta e substantiva, posta a serviço de uma imagética que, a partir de elementos realistas (“vento”, “fuzis”, “cara”), cria imagens brutas e brutalistas que transbordam o realismo.

“O intrépido vai às estrelas / Somalis se atropelam em botes”. Numa síntese brutal, juntam-se e chocam-se a máxima potência técnica e a vontade de potência da sociedade tecnológica (“O intrépido vai às estrelas”), sobrepostas à seca ironia ante o devaneio do desejo (idem) e à máxima impotência que cerca a primeira e para ela tenta convergir, em mais de um sentido (“Somalis se atropelam em botes”). Aqui se flagra, condensada, a tessitura sonora bonviciniana: ela prescinde de rimas, mas se impregna de quase-paronomásias. O que é um inteiro paradoxo: a paronomásia, como se sabe, é a figura de linguagem das figuras de linguagem, contendo todas elas (rima, assonância, aliteração, anagramia etc.). Uma quase-paronomásia é um quase-todo. Não busca a forte evidência (sonora), mas a força da sutileza. Menos é mais, mais com um pouco menos: inTRÉpidoesTRElasaTROpelam é uma quase-paronomásia tripla (reforçada pelo mesmo número de sílabas e igual acentuação), ou um trio de cacos de paronomásia (somado e sobreposto a estreLAs-somaLIs-atropeLAm).

Cacos, não por acaso, é uma das palavras-chave para descrever/sintetizar a poética bonviciniana. Feita da colagem de cacos de referências morfossemânticas, ela é ao mesmo tempo uma colagem, um bricabraque, um mosaico e um caleidoscópio.

 

O vento atira fuzis na cara / Valões confiscam estátuas gregas / Vikings esfolam alaúdes e violas / Óbulo de Caronte, junk bonds // Cânticos, iates deslizam pela orla / Je ne demande pas la lune / O intrépido vai às estrelas / Somalis se atropelam em botes // Pássaros disparam das rochas / Ondas, o mexilhão se lixa / Barcos viram / na costa da Líbia // O mar traga eritreus e senegaleses / À boca da barra se perde o navio / O mercenário degola um infiel / Traficantes curram burcas // Passadores aliados / O primeiro-ministro afunda / A maré carrega / Marrecos boiam entre as iscas

 

A travessia precária do Mediterrâneo é a entrada para o inferno, do qual os africanos tentam escapar (fome, guerra, miséria). “Óbulo de Caronte, junk bonds”: Caronte atravessava as almas dos mortos pelo rio Estige, fronteira do Hades, em troca de um óbulo (moeda), que os gregos punham na boca do cadáver. Aqui, “valões” (belgas) “confiscam estátuas gregas”, produtos do mercado negro arqueológico, e “vikings” (nórdicos) “esfolam alaúdes e violas”, em busca do que possam roubar, para além da paga prévia necessária (enquanto “o mercenário degola um infiel” e “traficantes curram burcas”). Junk bonds são, literalmente, “títulos podres”, de alto risco, alto retorno ou alta perda (um tipo de papel do mercado acionário). Mais especificamente, títulos de dívidas: dívidas podres. Como as dos mortos-vivos que fazem tal travessia (costuma-se pagar uma parte antes da viagem, outra depois, mesmo se morto durante ela – a família herda a dor e a dívida). Alto risco, alto retorno ou alta perda: numa palavra, polissemia. Cacos polissêmicos, cuja sobreposição gera o que se chamava, no recente tempo anteutópico das vanguardas, alta taxa de informação poética.

A poética de cacos polissêmicos & alta taxa de informação morfossemântica (explicitação necessária, pois l´assemblage em si é conhecido, praticado e diluído desde o dadaísmo) chega talvez a seu momento mais alto (portanto, mais complexo e mais denso) em “Sonoridades” (pp. 73-74).

O poema é um quadro sonorocubista de (não meramente sobre) um atentado terrorista islâmico, feito com um caminhão na Promenade des Anglais, larga avenida à beira-mar de Nice, em pleno feriado nacional francês de 14 de julho (2016). Nice fica no sul azul da Provença. A poesia moderna nasceu à luz serena da Provença (um de maiores nomes da poesia provençal foi Bertrand de Born, personagem do poema). E a história morreu atropelada, pálida e pelada, pelo trem artilhado do caos (“scrééch ié bang boomp beep praaa”, ecoa o poema). Palavras em provençal, que parecem sem sentido e estilhaçadas, e sem sentido porque estilhaçadas, e estilhaçadas porque sem mais sentido, espalham-se entre palavras estilhaçadas no sem sentido sonoro da cena. Imagens se atropelam: “carcaças de scooters bicicletas atiradas no mar um cardume abocanha um fêmur um turista faz um último selfie vaza coca-cola pelo ouvido”. Sons idem: “allahu bow bbrrzz raqqua as-suk zakat ratatá” – uivada saraivada de fonemas-ruídos, extensa onomatopeia atropelada do extenso atropelo de corpos, silvos de sangue no ar, urros de carne no asfalto, palavras perdidas, balas, bombas, alarmes e metralhas, entre ásperas palavras árabes (allahu, raqqua, as-suk, zakat). “Vá cantar esta merda em outro lugar”, conclui então o poeta para si mesmo, para o poeta provençal, para o assassino marroquino (Mohamed Bouhlel), para a pasma poesia de agora e para o coro cósmico de cadáveres do interminável pesadelo da história.

Não há, na poesia brasileira contemporânea, o que se lhe compare.

O álbum A nova utopia foi gravado no Nimbus Studios em São Paulo, em 2021/2022. Poemas de Régis Bonvicino do livro A nova utopia (Quatro Cantos, 2022). Sequência da parceria de Rodrigo Dário e dele, iniciada com Deus devolve o revólver (2019/2020). 

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Régis Bonvicino

nasceu em São Paulo, em 25 de fevereiro de 1955. Poeta reconhecido internacionalmente, participou de diversos eventos literários e tem versões de seus poemas traduzidas em inglês, espanhol e mandarim, entre outras línguas. Seu primeiro livro de poemas, Bicho papel (1975), foi uma autopublicação, seguida por outra, em 1978, Régis Hotel. Na década de 1980, lançou Do Grapefruit (1981), um livro com suas traduções de Yoko Ono e trabalhos de arte de Regina Silveira e Julio Plaza. Em seguida vieram Sósia da cópia (1983) e Más companhias (1987). Durante a Assembleia Constituinte, de 1987 a 1988, foi conselheiro parlamentar em Brasília. Em 1990, Bonvicino tornou-se magistrado por concurso. Ao fechar a produção da década, o livro 33 poemas (1990) apresentou a rima assonante como um dos fatores de estruturação dos poemas, e recebeu o prêmio Jabuti de 1991

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Luis Dolhnikoff

estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, além das revistas Sibila e Babel e das publicações eletrônicas Sibila, Germina, Digestivo Cultural e TriploV (Portugal). Tem textos publicados nas principais revistas literárias brasileiras, impressas e eletrônicas, além de Tsé=tsé 7/8 (número especial com 30 poetas brasileiros contemporâneos), Buenos Aires, outono 2000; Hipnerotomaquia, Cidade do México, Aldus, 2001; Ratapallax 11, New York, spring 2004; Mandorla – New writing from Américas 8, Illinois State University, 2005. É autor dos livros de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992) e Depois do sol (no prelo, 2020), além dos livros de poemas Pãnico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009) e As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016)

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