Mais velhos que a nação, uma vez que Moçambique conquistou a independência do jugo colonial português somente no ano de 1975, após uma década da Guerra de Libertação (1964-1974). Assim, os escritores que compõem o panteão literário moçambicano, no que concerne à prosa de ficção mais expressiva do país, nasceram à época dos desmandos salazaristas nas chamadas “províncias ultramarinas”. Aliás, fora este artifício linguístico – não designar as colônias africanas como tal – o estratagema adotado pelo ditador lusitano para que os portugueses fossem os últimos europeus a deixar o continente e, assim, ludibriar as autoridades da ONU, na sequência da Segunda Guerra Mundial. À parte essas informações historiográficas, à exceção de Ungulani Ba Ka Khosa, nascido em 1957, Paulina Chiziane, Mia Couto e João Paulo Borges Coelho partilham do ano de 1955 como o mesmo de seus respectivos nascimentos. Logo, a experiência pessoal de terem passado pela época colonial decerto aumenta a espessura epistemológica e estética de suas obras.
No alvorecer da independência, em 1976, deflagrou-se a Guerra Civil, a qual se arrastaria até 1992, altura da assinatura do Acordo de Paz, cujo obituário assinalou cerca de um milhão de mortos. Trata-se das vítimas do conflito sangrento entre Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique – elite militar responsável por vencer os portugueses e gerir o país nos anos vindouros) e Renamo (Resistência Nacional de Moçambique), cuja recusa ao controle estatal pelo grupo opositor sempre foi o inconciliável pomo da discórdia. Sob o signo ígneo, pois, a literatura produzida em Moçambique no pós-independência, sobretudo a partir de meados da década de 1980, será inevitavelmente marcada pela beligerância de sucessivas guerras, pelos resquícios sórdidos do colonialismo luso e pela experiência da implantação de um governo de cariz socialista, tendo como pano de fundo a Guerra Fria e o posicionamento de Moçambique como integrante do bloco de leste.
Militante da Frelimo nos anos revolucionários, Paulina Chiziane é considerada a primeira romancista de Moçambique por ter publicado, em 1990, o livro intitulado Balada de amor ao vento, sob a chancela da Associação dos Escritores Moçambicanos, romance que só teve o seu devido reconhecimento interno, quando Chiziane foi “descoberta” na Feira de Frankfurt, na Alemanha, e os direitos autorais do volume foram negociados com a Editorial Caminho, em Lisboa, sob os cuidados de Zeferino Coelho, importante editor português, o qual teve um papel de relevo ao divulgar autores moçambicanos praticamente incógnitos em Portugal, além de angolanos e caboverdianos. Ademais, imersa numa sociedade marcadamente androcêntrica, apesar de abordar o temário do casamento tradicional e a rebeldia da jovem protagonista Sarnau – que se indispõe ante as convenções sociais com as quais se vê culturalmente enredada – Balada de amor ao vento foi, a princípio, injustamente desdenhado pela crítica como um romance que tratava apenas de irrelevantes assuntos de mulher.
Em A room of one’s own, ensaio que a escritora britânica Virginia Woolf publicou em 1929, fruto de palestras ministradas para o público feminino da Cambridge University no ano anterior, cuja tradução brasileira intitula-se Um teto todo seu (2014), Woolf afirma que “As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural.” E continua sua reflexão: “Sem esse poder, provavelmente a terra ainda seria pântanos e selvas. As glórias de todas as nossas guerras seriam desconhecidas.” Dessa forma, no romance de Paulina Chiziane, Ventos do Apocalipse, publicado em 1995, embora escrito em 1991, ainda sob a atmosfera plúmbea da Guerra Civil, não há dúvidas de que a escritora moçambicana rompia paradigmas ao afrontar a mentalidade recalcitrante da dominação masculina em favor da emancipação das mulheres, inclusive na seara da criação artística, ao expor as entranhas da guerra pelo seu olhar feminino, testemunhal, a ecoar a reflexão de Woolf: “Em todas as guerras do mundo nunca houve arma mais fulminante que a mulher, mas é aos homens que cabem as honras de generais.”
Portanto, não raro vinculada às pesquisas de caráter emancipatório das mulheres e do empoderamento oriundo da escrita feminina, principalmente em razão da aclamada recepção que Niketche: uma história de poligamia (2002) teve nos mais diversos quadrantes, Paulina Chiziane também é tida como grande referência das culturas tradicionais de Moçambique, cuja cosmovisão, presente em suas narrativas breves ou mesmo em suas tramas romanescas, sempre sob uma perspectiva acentuadamente feminina, teria a capacidade de amalgamar não apenas a realidade social, histórica, econômica e cultural de Moçambique, mas também servir de parâmetro para mulheres em quaisquer contextos de opressão. Sendo assim, não há razão para termos apenas o romance Niketche: uma história de poligamia publicado por uma grande casa editorial brasileira, cuja presença na lista do vestibular da Unicamp, a partir de 2022, talvez tenha sido fator decisivo para tal edição.
Ao longo de mais de três décadas de intensa atividade literária, Paulina Chiziane sempre recusou o rótulo de romancista, pelo que invariavelmente se autodesignou como contadora de estórias, pequenas e grandes, inspirando-se com frequência nos contos tradicionais à volta da fogueira. Trata-se não somente de uma postura autoral, ou mesmo política, a qual refuta um gênero literário cuja origem é sabidamente europeia, mas também reafirma a sua filiação às tradições moçambicanas oriundas da oralidade, nas quais os mais velhos, à noite, ao calor da chama da fogueira, transmitem saberes, experiências, sensibilidades e afetos, desde que pronunciada, como introito, a expressão karingana ua karingana, o mágico “era uma vez” dos moçambicanos. Afinal, se o romance moçambicano tem o conto tradicional como matriz, a polissemia do vocábulo karingani – termo utilizado pelos rongas, povo de origem bantu do sul de Moçambique, cujo significado, entre outros, pode ser conto, fábula ou lenda – prova-nos que o universo romanesco moçambicano surge potencialmente híbrido a deambular por balizas genológicas.
A primazia de simbolicamente “estar à volta da fogueira” para a arquitetura de um ambiente legítimo de troca intelectual está sempre preestabelecida na escrita de Paulina Chiziane, não sendo fortuita, portanto, a disposição dos participantes em círculos à escuta de histórias tradicionais. Ora, o “estar à volta de” mantém o espaço propício a diálogos mais horizontais, no qual cada indivíduo estará necessariamente ligado à comunidade e apartado da solidão. Logo, a palavra literária ilumina e aquece numa corrente a atar uma espécie de sororidade, firmando-se como símbolo de autonomia feminina, miçangas de um mesmo adereço africano. Em gesto solidário às mulheres, a escritora moçambicana não se levanta como griotte a monopolizar o discurso, mas concede voz e vez às inúmeras personagens através de narradoras performáticas que aos poucos vão desfiando suas mágoas, dissabores, proezas e desejos.
Ao receber a mais importante honraria das literaturas de língua portuguesa, o Prêmio Camões, em fins de outubro de 2021, Paulina Chiziane fez questão de recepcionar a imprensa em volta da fogueira, no quintal de sua casa, num gesto que define sua postura telúrica, seu inalienável projeto literário, sua voz griótica de timbre coletivo, sua luta pelo reconhecimento das mulheres nas mais diversas esferas sociais de Moçambique e do mundo. Enfim, sob o signo do fogo e através de sua permanente letra em riste, Paulina Chiziane sonha um mundo, infelizmente, ainda distante. Entretanto, a mais célebre escritora moçambicana sabe, tal como certa vez pontuara Gaston Bachelard, que “A chama nos força a imaginar. Diante dela, desde que se sonhe, o que se percebe não é nada, comparado com o que se imagina.”
Adilson Fernando Franzin
Doutor em Estudos Portugueses pela Université Sorbonne, em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP.