Há 55 anos, o diretor italiano Bernardo Bertolucci, na época com 29, lançava seu sexto longa-metragem, “O Conformista” (MUBI). O filme, que é uma adaptação do livro homônimo de Alberto Moravia, publicado em 1951, aborda aquele que foi o principal inimigo da Europa na primeira metade do século XX: o fascismo. Após mais de sete décadas desde o lançamento do romance, e de cinco do filme, a ascensão da extrema direita ainda assola o mundo, não apenas o continente europeu, mas também a América Latina, mantendo a atualidade das discussões propostas por Bertolucci em 1970.
Bernardo Bertolucci nasceu em Parma, na Itália, em 1941. Seu pai, Attilio Bertolucci, era um poeta e apreciador de cinema. Foi ele quem introduziu o filho ao pensamento marxista, que seguiu com o diretor por toda a sua vida e também o acompanhou nas artes. Sim, nas artes, pois antes de conhecer o cinema, ele seguia os passos do pai como poeta. Em 1962, inclusive, venceu o importante prêmio Viareggio de literatura, por seu livro Perto do Mistério. O verdadeiro responsável por aproximar Bertolucci da sétima arte foi Pier Paolo Pasolini (1922-1975), o icônico poeta e cineasta italiano que era amigo do pai de Bertolucci, e levou o jovem para ser seu assistente nas filmagens do longa Accattone, de 1961.
Ao longo da década de 1960, Bertolucci deu continuidade ao ofício do cinema e, em 1964, lançou o longa Antes da Revolução que acompanha o dilema de um jovem em conciliar a sua militância política com as suas origens burguesas. O filme foi um dos propulsores para o Maio de 68 e o primeiro a alcançar uma maior visibilidade entre as obras do diretor. Em 1968, ele lança Partner, filme com grande influência godardiana e de toda a nouvelle vague. Mas a grande inovação de Bertolucci para o cinema viria dois anos depois, em 1970, com “O Conformista”.
Na obra, acompanhamos Marcello (Jean-Louis Trintignant), um pequeno burguês insatisfeito com seu casamento, que aceita trabalhar para o governo fascista de Mussolini. Em sua viagem de lua de mel a Paris, ele recebe uma missão: matar seu antigo professor de filosofia, em defesa do fascismo. A recepção do longa, tanto pela crítica quanto pelo público, foi muito positiva, até então o filme mais popular do diretor. Diferente de A Estratégia da Aranha (1970) e Antes da Revolução (1964), Bertolucci conseguiu com “O Conformista” achar uma “relação dialética com um público mais amplo”, o que possibilitou a absorção de sua obra por mais pessoas. No entanto, alguns aspectos do filme que exigem uma maior reflexão política, psicológica e histórica devem ser vistos com um cuidado maior para não gerar confusões, já que o diretor segue uma narrativa não linear.
Aspectos técnicos e referências
Um dos principais responsáveis pela obra prima de Bertolucci é Vittorio Storaro, o diretor de fotografia italiano que fez sua estreia no longa. Bastante influenciado pelo pintor italiano Caravaggio, Storaro passa a adaptar as técnicas de tenebrismo e chiaroscuro das pinturas barrocas para o cinema, utilizando contrastes fortes entre o escuro e o claro, mostrando as dualidades de sentimento das personagens. A fotografia também brinca com uma paleta de cores mais fria ao retratar o fascismo italiano e com cores mais próximas ao dourado quando mostrado o passado da Itália, mais ligado a um saudosismo idealizado. As cenas que se passam em Paris também trazem uma imagem de liberdade com cores mais quentes e iluminação natural.
O cenário realça a arquitetura fascista da Itália como melancólica, com edifícios imensos, porém sempre vazios, trazendo como inspiração as pinturas surrealistas e metafísicas de Giorgio de Chirico. A ausência de humanos e a presença de objetos misteriosos em algumas cenas, como canários, armas de fogo e espelhos, reforçam a ideia de oniricidade e subconsciente, tratados no filme.
Outro destaque é a montagem de Bertolucci, composta por uma narrativa nada linear e cheia de flashbacks que, à primeira vista, parecem sem sentido, mas que trazem propósitos psicológicos essenciais para o entendimento da obra. Da mesma forma, a montagem utiliza um recurso teatral, o distanciamento brechtiano, para que o telespectador não se identifique com as personagens na intenção de gerar uma reflexão maior sobre a obra.
O título do filme
O título do longa não apenas faz referência ao livro homônimo de Moravia, mas também representa o tema central retratado por Bertolucci: a abdicação da individualidade em troca da aceitação política e social. Durante o filme, o telespectador conhece um pouco mais da história do protagonista, seus traumas, como a violência que sofreu do pai e também o abuso por parte do motorista da família quando era criança. Percebe-se que Marcello possui um desejo de se encaixar de qualquer forma em um grupo social. Assim como muitos, ele não é um fascista por ideologia, mas sim por uma necessidade de pertencimento.
No decorrer do longa, o protagonista passa a fazer cada vez mais concessões para se moldar ao sistema fascista e, com isso, perde aos poucos toda a sua essência, até chegar no ápice do conformismo, quando concorda em matar o seu professor. A obra representa de maneira nítida como “homens comuns” passam a normalizar a barbárie. O próprio Bertolucci diz: “Marcello não é um monstro, é um homem comum, e é exatamente isso que o torna tão perigoso”, corroborando que o conformismo, na realidade, não é apenas uma escolha individual, mas sim um mecanismo sustentado por sistemas opressores.
Vittorio Storaro, o diretor de fotografia do filme, também trabalha com o conceito de conformismo ao brincar com os cenários de edifícios monumentais do governo fascista em comparação com a pequenez do homem, mostrando o domínio que tem o Estado sobre a população. Outro contraste interessante na obra é o de Marcello (conformista) com Anna, a esposa do professor, por quem ele se apaixona. Anna é acima de tudo uma mulher livre. Livre para seguir a ideologia que é compatível com aquilo que ela acredita, livre para se informar e ter pensamento crítico, livre para ser sensual… essa liberdade é tudo o que Marcello não possui, mas almeja ter, mesmo que inconscientemente. É isso que tanto o fascina em Anna.
O conformismo expressado por Bertolucci em 1970 é com certeza diferente do vivido nos dias de hoje, mas ainda assim a temática é extremamente atual. Com as redes sociais, por exemplo, há uma grande pressão por performidade, como uma obrigação de atender às expectativas alheias e, junto com as ondas de cancelamento, muitos indivíduos passam a moldar suas opiniões com medo de serem excluídos. Além disso, tantos são aqueles que, por pressão dos outros, excluem indivíduos de grupos sociais para poderem se encaixar no sistema.
Sexualidade reprimida
Um dos temas mais complexos tratados no filme é a sexualidade reprimida de Marcello. O casamento vazio com Giulia esconde o grande trauma sofrido pelo protagonista quando criança, em que o motorista de sua família tentou abusar dele. Na cena, Lino (o motorista) mostra uma arma para Marcello, associando como símbolo fálico, e pergunta ao adolescente: “Você gosta dela? É linda, não?”, utilizando a arma como uma metáfora para o desejo homossexual, relacionando como algo perigoso e proibido.
Para relacionar a narrativa com a psicanálise podemos trazer a teoria de Freud, que diz que memórias traumáticas são ‘empurradas’ para o inconsciente em um processo de “recalque”, que posteriormente ressurgem como sintomas. Para Marcello, o abuso de Lino foi recalcado e convertido em violência política. De certa maneira, é possível dizer que o fascismo dele representa a fuga de sua sexualidade recalcada, enquanto o seu conformismo é uma defesa psíquica contra o desejo reprimido por ele.
Outra análise freudiana presente no longa é a relação edipiana entre Marcello, Anna e o professor Quadri. Para o protagonista, o casal Quadri representa os elementos edipianos nos quais Anna é a figura materna; sedutora, intelectual, livre e inatingível, e o professor funciona como uma figura paterna, uma autoridade intelectual e política. A teoria é um pouco modificada por Bertolucci no momento em que Marcello não passa a sentir desejo apenas pela figura materna (Anna), mas também pelo professor Quadri. Além disso, a rivalidade com a figura paterna aparece diferente no filme em relação à teoria de Freud. A personagem de Jean-Louis Trintignant sente inveja da liberdade intelectual de seu professor, mas também o vê como um obstáculo para a fantasia homoerótico reprimida.
O desejo inacessível por Anna é quase consumado quando os dois se encontram na neve e flertam com um beijo. A recusa por parte de Marcello não se dá por moralidade, mas porque seu verdadeiro objeto de desejo é, na realidade, o professor Quadri, seu pai edipiano. Percebemos, a partir disso, que a castração para o protagonista é o próprio Estado fascista, um sistema que reprime essa relação homoerótica e que o manda matar o professor Quadri.
O superego de Marcello, aquilo que internaliza as normas e morais da sociedade e age como um juiz interno para Freud, é representado pelo fascismo, que é um grande “pai simbólico” para o protagonista. Na contramão, o professor Quadri constitui tudo aquilo que é reprimido pelo superego de Marcello. E ao matar o professor, ele elimina a única parte dentro de si que contestava o superego.
Após a realização de “O Conformista”, Bertolucci chegou a ligar a relação edipiana entre Marcello e o professor Quadri a ele e a Jean-Luc Godard. No filme, tanto o endereço, quanto o número de telefone dos Quadri são os mesmos de Godard em Paris nos anos 1970. O francês foi como um mentor para Bertolucci na sétima arte, que chegou a dizer que vê Godard como um “pai adotivo” , além de ter dito a frase: “Eu trocaria a minha vida por uma das sequências de Godard”. Mas em determinado momento, o diretor italiano entendeu que era necessário “matar” seu mentor para encontrar o seu próprio estilo, e essa ruptura veio com “O Conformista”.
Bertolucci se desprende das panfletagens políticas godardianas para críticas metafóricas, troca a sexualidade racional por traumas freudianos e se coloca no lugar de Marcello. Ele não quer ser mais um conformista da vanguarda francesa e, assim como Marcello precisa se libertar do fascismo, Bertolucci precisa se libertar da Nouvelle Vague, matando o seu mentor para achar o seu caminho.
Se Marcello representa um édipo fracassado que não ocupa o lugar da figura paterna, Bertolucci é o bem-sucedido, matando Godard e a Nouvelle Vague com uma obra prima e instaurando um novo legado na cinematografia.

Rodrigo Matias
Estudante de jornalismo na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Tem interesse pelas artes, principalmente o cinema e a música.