Nelly Sachs, uma das mais importantes poetas de língua alemã do século 20, nasceu em 1891 em Berlim, filha única de um industrial judeu, a quem prometeu não chorar sempre que repreendida. De fato, amigas suas de Estocolmo, onde morou nos últimos 26 anos de vida, nunca a viram às lágrimas, apesar de atormentada pelos problemas psíquicos, mania de perseguição e internações recorrentes – mas não pela vida espartana que levou até mesmo depois de ganhar o Prêmio Nobel, em 1966. Tendo finalmente escapado com sua mãe num último voo para a Suécia em 1940, Nelly Sachs voltou a escrever no exílio uma poesia cada vez marcada pelo judaísmo e o Holocausto, com ciclos e livros que se espalharam pelas décadas seguintes. A partir de 1960, experimentou reconhecimento de público e de colegas e recebeu vários prêmios importantes, culminando com o Nobel. Celan, de quem se sentia próxima apesar dos poucos encontros, acabou por acusá-la de “poeta oficial dos judeus”, passando por cima de seu sofrimento e de sua busca pela palavra, apesar de. Morreu em 1970, poucas semanas depois do próprio Celan. A seu amigo Hans Magnus Enzensberger, que a fez renascer na Alemanha, escreveu nos anos 60, durante uma grave crise psíquica: “Só sobrevivo se puder trabalhar.” Depois de sua morte, a obra de Nelly Sachs foi caindo no esquecimento. No Brasil, não há sinal recente de sua poesia. Os quatro poemas aqui publicados foram pinçados propositalmente de diferentes livros. Eles e mais outros farão parte de uma antologia.
POVOS DA TERRA
Povos da Terra
vocês, com a força do desconhecido
firmamento, envoltos como rolos de fios,
vocês, que costuram e de novo desfazem o cosido,
vocês, que adentram o embaraçado das línguas
como em colmeias,
para picar o açúcar
e ser picados –
Povos da Terra,
não destrocem o universo das palavras,
nem retalhem com as facas do ódio
o som, que nasceu com o sopro.
Povos da Terra,
ah, que ninguém pense em morte ao dizer vida –
e não em sangue, ao falar berço –
Povos da Terra,
fiquem as palavras na origem,
pois são elas que podem
aproximar os horizontes dos céus verdadeiros
e, pelo seu avesso,
como a noite bocejando atrás da máscara,
ajudar as estrelas a nascer –
[de: Estrela escurecida (1949)]
TODOS os países estão prontos para levantar-se
do mapa.
Para livrar-se de sua pele de estrelas
ajeitar nas costas
os feixes azuis de seus mares
encaixar suas montanhas nos rastros de fogo
como gorros nos cabelos esfumaçantes.
Estão prontos para levar na mala
o último peso de melancolia, essa boneca-borboleta
sobre cujas asas eles um dia terminarão
a viagem.
[de: E ninguém mais sabe (1957)]
A LINHA RETORCIDA DO SOFRIMENTO
A linha retorcida do sofrimento
apalpando a geometria divinamente inflamada
do Universo
sempre no rastro iluminado até você
e de novo escurecido na vertigem
dessa impaciência de chegar ao fim –
E aqui nas quatro paredes nada
além da mão do tempo pintando
embrião da eternidade
com a luz original sobre a cabeça
e o coração fugitivo acorrentado
saltando de sua vocação: ser uma ferida –
[de: Morte ainda celebra a vida (1961)]
Em meu quarto
onde fica minha cama
uma mesa uma cadeira
um forno de cozinhar
o universo ajoelha-se como em toda parte
para se redimir –
Faço um traço
escrevo o alfabeto
rabisco na parede a sentença suicida
de onde logo brotam os renascimentos
prendo já o firmamento na verdade
e a Terra começa a martelar
a noite se solta
cai
um dente morto da boca –
[de: Enigmas abrasadores (1962-1966)]
Claudia Cavalcanti
É germanista formada em Leipzig, na Alemanha. Traduziu e organizou, entre outros, Poesia Expressionista Alemã, De Profundis (Georg Trakl), Cristal (Paul Celan) e, mais recentemente, O Tempo adiado e outros poemas (Ingeborg Bachmann, Todavia, 2020). É autora de A vida dos outros e a minha (Cultura e Barbárie, 2022).