No ano de 1887, Joaquim Maria Machado de Assis já era um escritor renomado. Até então publicara seis romances — entre os quais Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, duas de suas obras-primas — além de quatro volumes de contos, bem como artigos, crônicas, poemas, peças teatrais e contos avulsos. Neste mesmo ano, surgiu em Varsóvia um opúsculo intitulado Língua Internacional, publicado em russo, polonês, alemão e francês. Seu autor identificava-se apenas pelo pseudônimo de Dr. Esperanto (aquele que tem esperança). O livrinho continha o alfabeto, orientações de pronúncia e as 16 regras fundamentais da gramática, bem como uma coleção de exercícios ilustrativos, um vocabulário e um prefácio, no qual o autor explanava as razões que o levaram a criar esta língua. O livrinho de 1887 foi logo seguido em 1888 de um segundo volume. Um ano depois, publicou-se uma tradução em inglês.
O autor não permaneceu no anonimato: era o Dr. Lázaro Luís Zamenhof, judeu polonês, médico oftalmologista e poliglota, e Esperanto passou a ser o nome da língua. Zamenhof visava facilitar a comunicação entre os povos, disseminando o uso de uma língua simples, ao mesmo tempo rica em recursos, de aprendizado relativamente fácil e neutra em relação a nações, etnias, religiões e credos políticos. Qualquer um podia aprendê-la e usá-la, sem pagar direitos autorais nem pedir permissão ao autor. Logo começaram a surgir clubes e associações de esperantistas pelo mundo afora. Hoje o movimento esperantista é coordenado pela Associação Universal de Esperanto, com sede em Rotterdam, na Holanda. Entre suas várias funções, destaque-se a realização anual dos Congressos Mundiais de Esperanto; os encontros têm sido contínuos desde 1905, exceto por duas interrupções provocadas pela Primeira e Segunda Guerras Mundiais.
Há também uma Academia de Esperanto, que zela pela integridade da língua, dirime dúvidas e de tempos em tempos oficializa o uso de novos vocábulos. Qualquer esperantista tem o direito de propor e usar novas palavras, e, se elas forem amplamente aceitas pela comunidade, acabarão sendo oficializadas. Há muitos dicionários bilíngues de Esperanto, mas o mais importante é o Plena Ilustrita Vortaro, que define os significados e o uso dos vocábulos, assim como o faz, por exemplo, o Dicionário Aurélio em português. Desde o começo Zamenhof sabia que traduzir ao Esperanto obras de renome contribuiria para o desenvolvimento da língua, e este princípio tem sido seguido até hoje. Ademais, existe uma justificativa, talvez até mais importante: tornar obras escritas nos mais diversos idiomas, mesmo os com poucos falantes nativos, que fossem acessíveis ao mundo todo. Por esta razão, desde meados do século 20, esperantistas brasileiros se dedicaram a traduzir ao Esperanto obras de Machado de Assis, entre outros autores.
Em 1953 publicou-se a Antologio de Brazilaj Rakontoj (Antologia de Contos Brasileiros), na qual aparece um conto de Machado muito conhecido: Um Apólogo, traduzido por Alcebíades Correia Pais. Em 1958, foi a vez da coleção Teatro, na qual aparecem quatro comédias: O Protocolo, Não Consultes Médico, Quase Ministro e Lição de Botânica, peças traduzidas, respectivamente, por M. Aveleza de Souza, A. Caetano Coutinho, Henerik Kocher e Débora do Amaral Malheiro. Entretanto, Machado precisou aguardar mais algumas décadas para ter traduzidas as obras de maior peso literário. Fundamental contribuição neste sentido tem dado o Dr. Paulo Sergio Viana, colega esperantista e amigo meu de mais de cinqüenta anos. Paulo já traduziu os romances Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, e Esaú e Jacó. Também tem publicado coletâneas com vários contos, entre os quais o famoso O Alienista. Finalmente, juntos publicamos mais uma coletânea de contos, intitulada La Sekreta Kaŭzo kaj Aliaj Rakontoj (A Causa Secreta e Outros Contos). Quanto a mim, tenho pronta para publicação mais uma coletânea de contos machadianos e venho trabalhando na tradução de Quincas Borba.
Afinal, como é traduzir Machado? À primeira vista parece fácil, mas posso garantir que a aparente simplicidade de seu estilo é enganosa. A todo momento o tradutor tropeça em sutis ironias, jogos de palavras, rimas, trocadilhos, aliterações, referências histórico-geográficas, muitas hoje desusadas, e inusitadas expressões idiomáticas. Menciono a seguir algumas dificuldades, coligidas de Quincas Borba, sem nem de longe pretender esgotar o assunto:
A alma do Rubião bracejava debaixo deste aguaceiro de palavras; […]
[…] vieram vindo outras pessoas, às duas e às quatro […][Em quantidades crescentes.]
Era de boa altura, bonito corpo, a carameia coberta por um véu, cousa papa-fina. [Mulher especialmente bela.]
— Onde é que você bota os seus chinelos velhos, primo?[Onde você esconde suas namoradas?]
Maria Benedita já lhe conhecia esse sorriso especial, inexpressivo, sem ternura nem censura, superficial e pálido.
Já agora tinha a alma tão confusa e difusa como o espetáculo exterior.
[…] mas eu não fiz mais que florir e aromar, servi a donas e a donzelas, […]
Veja esta frase; eu tinha dito: Na dúvida abstém-te, é o conselho do sábio. E puseram: Na dívida abstém-te…
Estas e outras dificuldades são inerentes ao texto original, não ao Esperanto, e desafiam todos aqueles que se aventuram a traduzir Machado. A Língua Internacional possui, na verdade, grande flexibilidade e múltiplos recursos expressivos; por exemplo, um substantivo vira adjetivo, verbo ou advérbio pela simples troca da terminação. O Esperanto também permite criar palavras mediante seu vasto repertório de prefixos e sufixos e mediante a justaposição de radicais. É bem possível que Machado conhecesse o Esperanto ou pelo menos tivesse ouvido falar dele; mas, infelizmente, disto não temos notícia. Mas podemos hoje dizer que Machado já fala Esperanto em várias de suas obras principais. E esperemos que no futuro elas sejam ainda mais lidas e apreciadas por todos os amantes de literatura, de qualquer etnia ou idioma.
Francisco Stefano Wechsler
É professor aposentado de agronomia da Unesp e traduz obras ao esperanto.