A entrevista concedida à revista Piparote é relativa ao livro Poesia não tem futuro a menos que chegue ao fim, do poeta norte-americano Charles Bernstein. Os poemas deste livro foram gerados entre 2020 e 2022 por uma Inteligência Artificial treinada exclusivamente em todo o corpus do poeta. Ao editar o resultado, Bernstein fez muitas exclusões de poemas e versos, mas não acrescentou nenhuma nova linguagem. A arte da poesia sempre foi uma exploração da “condição humana”, a expressão do eu muitas vezes produzindo comentários culturais. Mas o que acontece quando o poeta não é apenas humano? Esta questão está no cerne de uma nova coleção singular intitulada “Poesia não tem futuro a menos que chegue ao fim: poemas de inteligência artificial”, o resultado de uma colaboração entre o artista Davide Balula e a lenda do poeta Charles Bernstein.

Embora gerada por um modelo de IA personalizado anterior a ferramentas mais genéricas como ChatGPT, esta coleção mantém a voz e a personalidade do poeta Charles Bernstein, abrindo um novo caminho, proporcionando uma exploração emocionante da intersecção entre literatura, tecnologia e arte, tornando este livro um testemunho do poder duradouro da colaboração entre humanos e máquinas. Na continuação das Instruções Geradas por IA de Davide Balula, iniciadas em 2018, Balula e Bernstein continuam a moldar o campo florescente da literatura sintética, oferecendo um vislumbre de como poderá ser o futuro da poesia, garantindo que os entusiastas da poesia agora também incluam robôs.

Release do livro

Biblioteca de Charles Bernstein para o projeto Biblioteca do autor

A OBRA

Luis Marcio: como você se sentiu ao ver seu próprio estilo como poeta sendo emulado por uma inteligência artificial? A experiência trouxe alguma nova compreensão sobre sua própria escrita?

Charles Bernstein: sobre essa colaboração, Davide Balula me procurou pela primeira vez quando nos cruzamos em uma inauguração no Whitney Museum of American Art. Assim que Davide começou a me enviar alguns resultados, meu foco estava inteiramente em ver quais poemas poderiam emergir daqueles dados confusos. Adoro ter algo para fazer: ali eu tinha páginas escritas e comecei a fragmentar partes delas para descobrir a verdade nos materiais, como diria um escultor modernista. Estava tentando encontrar (ou talvez criar) os melhores poemas que pudesse com os materiais que tinha em mãos. Não pensava em como esses poemas se assemelhavam ou se diferenciavam do trabalho que eu compunha livremente. Claro, eu estava constantemente tomando decisões estéticas. Eu não gostava de muitas páginas, mas logo encontrava algo valioso e podia deixar um poema como estava. Outras vezes, eu precisava cortar linhas. De certo modo, eu estava seguindo os princípios da poesia objetivista delineados por Louis Zukofsky há quase cem anos: sinceridade, no sentido de encontrar o poema em seus materiais, e objetivação, no sentido de deixar o poema falar por si mesmo e não por “mim”. Entendo que certas pessoas podem não gostar do fato de eu usar esses termos para um “material” gerado por um computador, mas foi assim que busquei encarar esse trabalho.

Após terminarmos o manuscrito, e mais ainda após a publicação do livro, comecei a pensar em como os poemas se relacionavam tanto a “mim” quanto à “minha obra”. No início, gostei da reação dos amigos de que o livro se parecia com a minha obra, mas não era tão bom quanto. Eu me senti como um John Henry da era digital, o homem do aço que tentou competir com uma furadeira. Mas logo percebi que essa era uma maneira errônea de pensar o problema. Meu trabalho anterior também tentou não emular a si mesmo: anos atrás, descrevi um novo livro como “caracteristicamente não característico”, o que é, porém, sua própria característica. Dessa forma, “Poesia não tem futuro a menos que chegue ao fim” é outro trabalho “não característico” meu (em colaboração com Davide): suas preocupações estruturais e formais estão em diálogo com meus trabalhos anteriores. E é tão “estranho” (desfamiliarizante) e original (por mais estranho que possa parecer dizer isso) quanto qualquer outro dos meus trabalhos.

LM: O título do livro, Poesia não tem futuro a menos que chegue ao fim, sugere um paradoxo intrigante. Você pode nos falar mais sobre a escolha desse título? 

CB: Esta frase, como resultado bruto, foi algo que saltou aos meus olhos. Ela tem a típica força paradoxal ou ambivalente (de desejar duas coisas) de muitos dos meus provérbios. A grande maioria das obras de que mais gosto, assim como a minha própria obra, parece aos leitores convencionais como uma poesia destruidora, em relação à poesia lírica e a poemas de autoexpressão. Acho que esse trabalho é, se é que é algo, ainda mais repugnante para leitores, editores e críticos liberais e humanistas: desagradável e algo que nem vale a pena contestar. Abaixo do desprezo. Não constará nem mesmo da longa lista do National Book Award (uma repreensão bem-merecida que partilha com todos os meus outros livros). Porém, para mim, muitos poemas líricos em primeira pessoa e poesia autoexpressiva são robóticos demais para o meu gosto. A poesia não tem futuro a menos que chegue a um fim.

LM: Durante o período de abril de 2020 a maio de 2022, que eventos ou temas específicos você acredita que mais influenciaram a produção dos poemas gerados pela IA? Você diria que a IA conseguiu captar o espírito desse período? Poderíamos dizer que ela tem um zeitgeist?

CB: Eu não sei. Se isso de fato ocorre, seria algo excepcional. E essa excepcionalidade tornaria os poemas esteticamente atraentes, o que eu acho que eles são. Certamente, o livro fala sobre o surgimento da IA e talvez sua entrada no mundo também mostre o medo que todos temos das máquinas nos tornarem obsoletos ou tomarem o controle – ou que o toque humano seja desvalorizado. Os seres humanos já fizeram muito para desvalorizar o nosso toque sem a ajuda dos computadores. Todavia, eu diria que esse trabalho em particular tem tudo a ver com a escolha estética individual. Mesmo que use a tecnologia disponível, como os poetas sempre fizeram. Mas eu ainda estou em vantagem.

LM: Quais foram os maiores desafios e surpresas na colaboração com Davide Balula e a inteligência artificial? Há algo que você faria diferente se repetisse esse projeto hoje?

CB: Toda a colaboração foi um desafio, no melhor sentido. Geralmente se imagina que a IA economiza trabalho, mas esses poemas exigiram ainda mais trabalho – meu e do Davide – do que se eu os tivesse escrito sozinho. Essa é outra ironia. Quando Davide veio me abordar pela primeira vez, eu não tinha experiência com chatbots e com o que agora se tornou onipresente nos mecanismos de busca. Esse trabalho representa algo que é pré-ChatGPT. Como Davide gerou os resultados, não tenho nenhuma ideia de como ele faria a programação agora. De qualquer forma, não estou planejando fazer outro trabalho como esse. Há muito me interesso por poesia para mídias programáveis – poesia digital ou algorítmica, como às vezes é chamada. Jackson Mac Low estava usando programas de computador para gerar poemas há décadas. Meus grandes amigos Nick Monfort, John Cayley e Loss Pequeño Glazier seguiram esse caminho de forma criativa. Então, vejo este trabalho muito nessa linhagem.

Adoro a voz artificial que Davide criou para o trabalho. Você pode ouvi-lo como um audiolivro aqui: LINK. Se eu pudesse continuar com esse trabalho, queria ter acesso imediato a essa voz (isso não é possível agora). Peguei um poema meu de composição bastante excêntrica e dialetal, “Ideosyncretic”, e pedi a Davide para usar minha voz de IA para lê-lo. Você pode ouvir o resultado aqui: LINK.

A RECEPÇÃO DA CRÍTICA

LM: Como os leitores têm reagido ao saber que os poemas do livro Poetry Has No Future Unless It Comes to an End foram escritos por uma IA? Você notou alguma diferença na recepção crítica em comparação com suas obras anteriores?

CB: Johanna Drucker escreveu um comentário lúcido sobre esse trabalho, mostrando seu típico brilhantismo ao delinear os temas, como estamos discutindo aqui: link. No evento de lançamento do livro, li um poema da coletânea, alternando com uma gravação da minha voz de IA lendo um poema. Explicamos o que estávamos fazendo e que todos os poemas foram produzidos por IA. Mesmo assim, minha esposa insistiu que eu havia escrito por mim mesmo os poemas que apresentei. Como ela me conhece melhor do que ninguém, tive de considerar que ela estava certa.

LM: Como você acredita que a crítica literária e o júri de prêmios devem se adaptar para avaliar obras geradas por IA? Quais critérios ou abordagens críticas seriam mais relevantes para lidar com a autoria, originalidade e profundidade em poemas produzidos por uma máquina?

CB: Como observei acima, eu diria que esses jurados julgariam esse trabalho como não qualificado para consideração e uma afronta à poesia lírica. Assim como fizeram com meus trabalhos anteriores. Mas eu realmente acho que, se uma poesia vencedora de um prêmio fosse escolhida por IA, a IA faria um trabalho melhor do que a atual safra de jurados que temos por aí.

The poems featured in this book were generated between 2020 and 2022 by an artificial intelligence program based and trained exclusively on the entire corpus of the poet Charles Bernstein. While editing the result, Bernstein made many exclusions of verses and entire poems, but did not add any new language. The art of poetry has always served as an exploration of the “human condition,” where self-expression often produces a profound cultural commentary. But what happens when the poet is not merely human? This question lies at the heart of a unique new collection entitled Poetry Has No Future Unless It Comes to an End: Poems of Artificial Intelligence, the outcome of a collaboration between the artist Davide Balula and the legendary poet Charles Bernstein.

Although generated by a custom AI model predating more generic tools like ChatGPT, this collection maintains the voice and personality of poet Charles Bernstein, opening a new path and providing an exciting exploration of the intersection: literature, technology, and art. This makes the book a testimony to the enduring power of cooperation concerning humans and machines. Building on the AI-Generated Instructions by Davide Balula, initiated in 2018, Balula and Bernstein continue to shape the burgeoning field of synthetic literature, offering a glimpse of what the future of poetry might be, ensuring that poetry enthusiasts now also embrace robots.

The Work

Luis Marcio: How did you feel when you saw your own style as a poet being emulated by artificial intelligence? Did this experience bring any new understanding about your own work?

Charles Bernstein: Davide Balula first approached me about this collaboration when I ran into him at an opening at the Whitney Museum of American Art. When Davide started to send me outputs, my focus was entirely on seeing what poems might emerge from the murky data. I love to have something to do: here I had pages of writing and I went about chipping away parts of it to find the truth in the materials, as a modernist sculptor might say. I was trying to find (or perhaps make) the best poems I could from the materials at hand. I was not thinking about how these poems resembled or differed from work that I freely composed. Of course, I was constantly making aesthetic decisions. I didn’t like many pages and then I would hit pay dirt and could leave a poem as is. Other times I needed to cut lines. In a sense I was following the principles of Objectivist poetry outlined by Louis Zukofsky almost a hundred years ago:  sincerity, in the sense of the finding the poem in its materials, and objectification, in the sense of letting the poem speak for itself and not for “me.” I realize some may balk at my using such terms for “material” generated by a computer but this is the way I approached the work.

            After we completed the manuscript, and more so after the book was published, I began to think about how the poems related to both “me” and “my work.” At first, I enjoyed the reaction from friends that it was like my work, but not as good. I felt like a digital age John Henry, the steel-driving man who tried to compete with a drilling machine. But soon I realized that this was a mistaken way to frame the issue. My previous work has also tried not to emulate itself: years ago I described a new book as –“characteristically uncharacteristic,” which is, though, its own kind characteristic. In that since, Poetry Had No Future Unless It Comes to an End” is another work of “uncharacteristic” work of mine (in collaboration with Davide): it’s structural and formal concerns are in a dialog with my earlier works. And it’s as “strange” (defamiliarizing) and original (odd as that may be to say) as any of my works.

  1. The title “Poetry Has No Future Unless It Comes to an End” suggests an intriguing paradox. Can you tell us more about why you chose this title?

This line line, from the raw output, jumped out at me.  It has the kind of paradoxical or ambivolent (desiring two things) force of many of my proverbs. Lots of the work I most like, and my own work, strikes conventional readers as destroying poetry, in the sense of first-person lyric, self-expressive poems. I think this work is, if anything, even more repellent to liberal, humanist readers, editors, critics: distasteful and something not even work contesting. Beneath contempt. It’s not going to be even on the long list of  the National Book Award (a well-deserved rebuke it shares with all my other books). But then, for my taste, much first-person lyrics and self-expressive poems are too robotic to appeal to me. Poetry has no future unless it comes to an end.

 

  1. During the period from April 2020 to May 2022, which specific events or topics do you believe most influenced the production of the poems generated by the AI? Would you say that the AI has managed to capture the spirit of this time? Could we say that it has its own awareness of the Zeitgeist?

I don’t know. If it does, that would be uncanny. And such uncanniness would make the poems aesthetically compelling, which I think they are. Certainly, the book speaks to the emergence of AI and perhaps its entry into the world also shows the fear we all have of the machines making us obsolete or taking control – or that human touch will be devalued. Humans have done a lot to devalue our touch without the help of computers. But, I would say, this particular work is all about individual aesthetic choice. While it uses the technology at hand, as poets have always done. But I still keep the upper hand.

 

  1. What were the biggest challenges and surprises in collaborating with Davide Balula and the artificial intelligence? Is there anything you would do in a different way if you were to repeat this project today?

The entire collaboration was a challenge, in the best sense. One might imagine AI as being labor saving, but these poems took even more labor –– by Davide and me –– than if I had written them myself. That’s another irony. When Davide first approached me, I had no experience with chats bots and what has now become ubiquitous on search engines. This work represents something that is pre-ChatGPT. As Davide created the outputs, I don’t have any sense of how he would go about doing the programming now. In any case, I am not planning to do another work like this. I have long-been interested in poetry for programmable media – digital or algorithmic poetry, as it is sometimes called. Jackson Mac Low was using computer programs to generate poems decades ago. My good friends Nick Monfort, John Cayley, and Loss Pequeño Glazier have inventively followed suit. So, I see this work very much in that lineage.

            I love the artificial voice Davide created for the work. You can listen to the work as an audiobook here < https://balula.org/ai/cbdb/>. If I could continue with this work, I’d like to have ready access to that voice (this is not possible now). I took a rather wacky dialect-inflected poems of my own composition, “Ideosyncretic,” and asked Davide to use my AI voice to read it. You can listen to that here < https://writing.upenn.edu/pennsound/x/Balula.php#:~:text=EXTRAS-,Ideosyncretic,-Poem%20from%20Bernstein%27s>

The Critics

  1. How have readers reacted upon learning that the poems in the book “Poetry Has No Future Unless It Comes to an End” were written by an AI program? Have you observed any differences in the critical reception compared to your previous works?

Johanna Drucker wrote a lucid commentary on the work, showing her characteristic brilliance in outlining the issues, as we are discussing here < https://johannadrucker.substack.com/p/poetry-has-no-future-unless-it-comes> . At the launch event for the book, I read a poem from the collection alternating with a recording of my AI voice reading a poem. We explained what we doing and that all the poems were produced by AI. Even so, my wife insisted that I wrote the poems I performed all by myself. And she knows me better than anyone, so I had to consider that she was right.

  1. How do you believe literary critics and award juries should adapt to evaluate works generated by AI? What criteria or critical approaches would be most relevant for dealing with authorship, originality, and depth in poems produced by a machine?

As I noted above, I would say such juries would rule this work ineligible for consideration and an affront to lyric poetry. Just as they have my previous work. But I do think that if the prize-winning poetry was picked by AI, AI would do a better job than the current crop of judges.

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Charles Bernstein

Nasceu em Nova Iorque (1950), é um poeta, crítico, editor e professor norte-americano. É um dos mais importantes membros da poesia "LANGUAGE", editor da antiga revista L=A=N=G=U=A=G=E e editor do website Sibila.

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Davide Balula

(1978, Viseu, Portugal) mistura o orgânico com o sintético, incentivando a participação do espectador e alistando o ambiente natural como agente ativo no seu trabalho. Trabalhos e apresentações individuais incluem: Machine Water, Musée Départemental d’Art Contemporain, Rochechouart; Alguns cultivados, outros minerados, galerie frank elbaz, Paris; 37,5°C, Centro Pompidou, Paris; Falando em Chamas, MoMA, PS1; Calorias e movimentos de dança para os sistemas de órgãos internos, Schirn, Frankfurt; Esculturas Mímicas, Bass Miami; Níveis de Ferro, Galeria Gagosian, Roma.

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Luis Marcio Silva

É formado pela UNESP em Letras/Francês e atua como escritor, tradutor e editor da Revista Piparote. É autor da dramaturgia "Dona Maria I - A Louca de Portugal" e trabalha profissionalmente como webmaster. Atualmente, está escrevendo uma coleção sobre a arte da edição literária, na qual aborda técnicas específicas sobre a produção de livros, revistas, verbetes e o papel do webmaster no universo editorial.

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