A entrevista inédita com o Professor Dr. Davide D’Alessio, concedida à Revista Piparote, tratou a respeito da publicação do seu novo livro na Itália Il Tesoro Nascosto: Risonanze bibliche e intuizioni teologiche nel mondo di Machado de Assis (O Tesouro Oculto: Ressonâncias bíblicas e percepções teológicas no mundo de Machado de Assis). Os entrevistadores são os editores Júlio Bonatti e Luis Marcio Silva.


Júlio Bonatti: Professor Davide D’Alessio, você possui formação acadêmica com uma ampla pesquisa e produção bibliográfica na área de teologia, tendo mestrado e doutorado pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Fale-nos de sua relação com os estudos literários e como foi a sua descoberta da literatura brasileira.

Davide D’Alessio: Sempre gostei da literatura. Na minha tese de doutorado (Ecce homo. Il dramma dell’umanesimo cristiano), por exemplo, incluí um capítulo sobre a experiência dramática da fé na obra de Dostoiévski. O meu orientador, o pe. Elmar Salmann, gostava muito de entrelaçar teologia e literatura. A respeito da literatura brasileira… quando cheguei no Pará, em 2011, me apaixonei pelo Brasil, pelo povo brasileiro. Por isso, procurei conhecer a cultura brasileira, começando pela cultura popular: as brincadeiras das crianças, a comida típica paraense, as danças da festa junina, o círio de Belém… e, claro, procurei conhecer um pouco a literatura também. O primeiro encontro com Machado de Assis foi assistindo um desenho para crianças. Era uma adaptação do conto Adão e Eva. Fiquei logo admirado e, sem nem perceber, comecei a pensar.

Luis Marcio: Você publicou em abril deste ano o livro Il Tesoro Nascosto, que dialoga diretamente com o universo machadiano, onde há sempre um “tesouro escondido” a ser descoberto. Conte-nos qual foi o “caminho do tesouro” que levou você até o prosador brasileiro e culminou na publicação deste livro.

DD: Em dezembro de 2017 voltei à Itália. No ano seguinte, recebi um convite do Instituto de teologia de Milão para dar um curso na área da teologia e literatura. Pensei logo em Ernst Wiechert e em Machado de Assis. Afinal, justamente lembrando do conto Adão e Eva, escolhi Machado de Assis e comecei a ler os seus contos. O que me chamou a atenção foram as muitas referências bíblicas que ele colocava nos seus textos. Muitas eram até sutis, difíceis de perceber, a não ser que o leitor tivesse uma verdadeira formação bíblica. Descobri que a intertextualidade é uma marca dos seus escritos. Pensava: se colocou essas referências, significa que ele, de qualquer forma, deve ter dialogado com o texto bíblico. Essas referências, pois, podiam ser consideradas como que um indício do diálogo que o escritor teve com o texto bíblico e que o leitor, se quisesse, podia continuar. Assim comecei a “seguir” essas referências. Tive a sensação de estar participando de uma caça ao tesouro. O tesouro, contudo, não é algo que se encontra simplesmente nos textos de Machado de Assis e sim algo que o leitor pode descobrir seguindo as pistas que se encontram nos escritos machadianos também! Agora, prestem atenção: não estou dizendo que o escritor colocou essas pistas para guiar o leitor, não. Estou dizendo que, mesmo sem querer, Machado deixou nos seus textos vestígios do seu próprio diálogo com a Bíblia, indícios que qualquer leitor pode seguir de modo a continuar o diálogo com o texto bíblico concordando ou discordando com Machado de Assis. Deste modo, mesmo dialogando com o escritor (que dialoga com a Bíblia), o leitor pode continuar o caminho da reflexão indo até além do próprio escritor e assim construir um próprio pensamento ou uma própria Weltanschauung.

JB: Você inicia a introdução de Il Tesoro Nascosto comentando o conceito de Weltanschauung e como o livro nasce de uma pesquisa fundamentada sobre ele. Como você explicaria para o leitor esse conceito e qual a sua importância metodológica para delinear uma cosmovisão católica a partir dos contos de Machado de Assis?

DD: Weltanschauung significa (de forma geral) “visão do mundo”. Aprendi esse conceito com Romano Guardini. O meu livro visa ajudar o leitor a construir uma própria visão do mundo ou, em outras palavras, a construir um próprio pensamento. Neste sentido, a Weltanschauung que eu proponho ao fim de todo capítulo (“riflessione teologica”) é a “minha” própria visão do mundo mas elaborada dialogando com Machado de Assis também. Partilhando a minha visão não pretendo, contudo, que o leitor comungue comigo e sim que ele mesmo, vendo o que eu fiz dialogando com Machado de Assis, construa a própria visão do mundo. Sei que existem interpretações que consideram Machado de Assis quase que ateu e outras que, ao contrário, o consideram quase que um “missionário da palavra”. O meu ponto  de vista é totalmente diferente. O meu interesse não é principalmente o de reconstruir o que Machado de Assis pensava e sim o que nós leitores, graças a Machado de Assis, ou seja, dialogando com ele, podemos pensar! Ele, deste ponto de vista, mesmo sem querer, me ajudou a aprofundar a minha visão católica do mundo, considerando aspectos novos, questionando ideias simplórias, insinuando dúvidas e despertando desejos e esperanças também. O tesouro escondido, portanto, não é simplesmente o que se encontra nos contos e sim o que se encontra na vida de cada um de nós e que nós podemos descobrir dialogando com os outros, neste caso com Machado de Assis!

LM: Tomando a liberdade para parafrasear o subtítulo do seu livro (Risonanze bibliche e intuizioni teologiche nel mondo di Machado de Assis), quais correspondências bíblicas e desdobramentos teológicos podemos encontrar nos contos machadianos?

DD: São muitíssimas e já existem estudos, mesmo que incompletos, sobre isso. Só quero citar uma correspondência bíblica, como exemplo do trabalho que eu fiz. No Conto alexandrino, o narrador escreve que “e o Egito, desde os Faraós até aos Lágides, era a terra de Putifar, da mulher de Putifar, da capa de José, e do resto”. Putifar, a mulher de Putifar, a capa são referências à história de José do Egito narrada no livro de Gênesis. Ora, o interessante é que, contando a história dos filósofos Pítias e Stroibus que pretendiam “reconstituir os homens e os Estados, distribuindo os talentos e as virtudes”, Machado de Assis coloque essas referências bíblicas. A história de José, vendido pelos irmãos, mostra que o caminho para refazer os homens (ou seja, em termos bíblicos, o caminho da fraternidade entre os homens) passa pela reconciliação. A história de Stroibus e Pítias, transformados em ladrões, mostra que qualquer tentativa científica de melhorar a humanidade é destinada ao fracasso. O que desperta no leitor essa comparação? É possível “reconstruir” o homem? Será que temos que confiar na ciência? Será que precisamos apreender o perdão? Seguindo esses pensamentos e respondendo a essas perguntas, despertadas pela presença dos elementos intertextuais (elementos que são indícios do diálogo do escritor com o próprio texto bíblico), o leitor vai construindo o seu próprio modo de encarar a realidade, ou seja, a sua própria Weltanschauung.

LM: Como aponta o filósofo Rinaldo Ottone no prefácio do livro, há uma singularidade dos leitores de Machado de Assis. De que maneira essa dimensão da leitura se reflete de forma ambígua na relação que Machado estabelece entre leitor e narrador, como você analisa no Capítulo II a partir do conto O Espelho?

DD: No Espelho o leitor “entra” numa casa onde quatro ou cinco cavalheiros estão discutindo questões de alta transcendência. Um deles, Jacobina, conta o que lhe ocorreu quando tinha 25 anos. O leitor, junto com os outros ouvintes (os quatro cavalheiros do conto) “entra” na história de Jacobina. Ao fim da história, estão todos (Jacobina, os cavalheiros e o leitor) na frente do espelho na casa da tia Marcolina! Cria-se assim uma identificação entre o leitor e Jacobina, tanto é que no final do conto Jacobina desaparece deixando o leitor em companhia dos outros quatro cavaleiros! Cabe agora ao leitor dizer o que viu diante do espelho de Jacobina, ou seja, acompanhando a história de Jacobina que para ele funcionou como que um espelho. O conto, pois, é um bom exemplo da relação que Machado de Assis cria entre o narrador e o leitor. O escritor, em outras palavras, provoca o leitor a se  interrogar, a se questionar, a pensar.

JB: Em Il Tesoro Nascosto você apresenta de forma integral os contos de Machado que compõem o seu corpus, como O Alienista, Teoria do Medalhão, entre outros. Vemos que você valoriza a importância de trazer os textos integrais aos leitores, a partir das traduções disponíveis em italiano. Diante disso, qual seria o papel de pesquisas como a sua para a formação de um público leitor de Machado de Assis na língua italiana?

DD: O meu livro se compõe de quatro capítulos, cada capítulo considera dois contos apresentando o texto (tradução, análise, estrutura), algumas interpretações e uma reflexão teológica. O ponto de partida é sempre o texto. O leitor precisa conhecer o texto, pois ele contém as pistas, para descobrir o tesouro escondido! As interpretações ajudam o leitor a considerar o que outros leitores descobriram nos contos. Ora, os textos machadianos são pouco conhecidos na Itália e as traduções não estão disponíveis na internet. Por isso decidi traduzir pessoalmente os contos que escolhi e disponibilizar a tradução no meu livro. As notas que acompanham a tradução visam ajudar o leitor italiano a “entrar” no conto esclarecendo detalhes ou aspectos típicos da realidade brasileira que só quem viveu no Brasil pode apreciar. Deste ponto de vista o meu livro, acredito eu, pode aproximar sim o leitor italiano a Machado de Assis.

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Davide D'Alessio

Possui doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (1999). Foi professor de teologia no seminário de Seveso e Venegono (Milão-Itália), Faculdade Teológica da Itália do Norte. De 2011 até 2017 esteve no Brasil como "fidei donum" e trabalhou como professor na Faculdade Católica de Belém. Atualmente vive na paróquia de São Carlos e Santo Ambrósio em Cesano Maderno, nos arredores de Milão

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