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Distinção e transgressão em A Cerimônia de Claude Chabrol – Mônica Costa Netto

Todos os destinos sociais, positivos ou negativos, consagração ou estigma, são igualmente fatais – quero dizer, mortais – porque encerram aqueles que são distinguidos nos limites a eles designados e fazem com que os reconheçam.

Pierre Bourdieu

(Les Rites comme actes d’institution, 1982)

Desde sua estreia em 1995, o filme de Claude Chabrol, La Cérémonie (“A Cerimônia”) –”Mulheres diabólicas” no Brasil – foi reconhecido como magistral, uma obra-prima do diretor francês. A este título, o reencontrei numa lista de “melhores adaptações” da plataforma Mubi. E fiquei surpresa: não me lembrava de que fosse uma adaptação. Curiosa também: não conseguia, com a lembrança que tinha do filme, adivinhar de que livro. Quis rever, mas antes procurei me informar. Ruth Rendell, a “rainha do crime”, no entanto, não me dizia nada, tampouco sua obra-prima adaptada: A Judgement In Stone (1977). Mas, uma vez apresentada a esse avatar de Agatha Christie e informada sobre o teor do seu romance, rapidamente julguei que se tratava de mais um caso para confirmar uma hipótese que me é cara. Isto é, a ideia de que, salvo exceções, as adaptações que costumam render os melhores filmes são as de romances medíocres.

Tal hipótese comporta um evidente julgamento de valor literário e, embora medíocre não queira dizer ruim, refere-se a um romance que não é considerado uma obra de arte extraordinária. Por isso mesmo, depois de ter revisto o filme e antes de querer escrever sobre ele, fui levada a questionar esse meu julgamento estético, que me pareceu imbuído de um preconceito cultural que o filme e minha reflexão sobre ele trouxeram à luz. Contudo, não creio que essa tomada de consciência invalide a hipótese, porque reconhecer que meus julgamentos de gosto sofrem determinações tanto da minha situação social quanto do meu “capital cultural” não me obriga a negá-los ao relativizá-los.

Talvez o livro da “baronesa da classe operária”, como foi chamada a aristocrata Rendell, provocasse esse mesmo efeito revelador, se eu o tivesse lido. Mas sei apenas que seu romance foi interpretado em termos de luta de classe. Também tomei conhecimento da declaração da autora segundo a qual, dentre todas as adaptações de sua obra, a de Chabrol era a única aceitável. Como quer que seja, o filme me levou a confrontar meu próprio preconceito cultural com relação aos romances do (sub?)gênero policial como os de Rendell. Porque, mais do que simplesmente expor um conflito de classes como pano de fundo para o clímax de um crime hediondo, o filme me pareceu pôr em cena uma dinâmica baseada no que o sociólogo Pierre Bourdieu identificou como “distinção cultural” (1979).[1] Ou melhor, trata-se de um caso extremo, em que a “luta pela distinção” – que, segundo Bourdieu, tensiona o campo de forças sociais, hierarquizando diferenças – abre um abismo social onde um agente, uma subjetividade desajustada, que deseja se afirmar, se precipita. Pois a afirmação de sua diferença coincide com a transgressão pura e simples, não só da moral hegemônica, mas da lei.

O supracitado romance de Rendell, em que se baseou o roteiro de Chabrol e Caroline Eliacheff, foi traduzido no Brasil com o título de Um assassino entre nós, já na França, preferiram L’Analphabète (“A Analfabeta”). Nele, aparentemente, Rendell inova o gênero, eliminando de saída todo suspense e enigma com a frase inicial do livro: “Eunice Parchmann assassinou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever.” Mas o segredo fatal revelado ao leitor, permanecerá um segredo para o espectador até mais ou menos a metade do filme. A família da alta burguesia britânica, afrancesada por Chabrol, em vez de “vale encoberto”, chama-se “Lelièvre”, ou seja, “a lebre”. Assim, para os espectadores habituados a prestar atenção nos detalhes que Chabrol tanto aprecia, não escapará a natureza morta pintada na parede da cozinha da mansão, em que uma lebre, presa de caça, se encontra pendurada. A pintura pode ser vista repetidas vezes, aparecendo junto aos membros da família, isto é, perto de cada futura vítima “Lelièvre”. Da mesma forma, Eunice “homem-seco”, a empregada assassina, é rebatizada Sophie “homenzinho”, ou “sujeito qualquer”, ou “boneco”, segundo a polissemia da palavra bonhomme em francês. É mantida a origem grega do primeiro nome da analfabeta e seu aspecto irônico – a moça naturalmente ignora que seu nome de origem erudita, seja “bela vitória” ou “sabedoria”, tem um tal significado. O espectador culto, por sua vez, terá a ocasião de especular sobre o destino, de certa forma trágico, dessa personagem mascarada, que parece guiada por alguma necessidade relativa ao seu modo de ser que a conduz ao crime. Embora trate-se sem dúvida de um determinismo sociológico, não propriamente trágico, ou de uma hipotética tragédia sociológica moderna.

Notemos que o romance de Rendell aparece, por sua vez, como livremente inspirado do caso real das irmãs Papin, um crime que chocou a França nos anos 1930 e, durante anos, fez proliferar controvérsias. O assassinato brutal da patroa e de sua jovem filha por suas domésticas, duas irmãs simplórias e trabalhadeiras, pelo motivo aparentemente fútil de terem sido rispidamente repreendidas, e que, após o massacre, foram encontradas pela polícia deitadas abraçadas na cama do quarto de empregada, suscitou paixões, inclusive políticas. Sobre esse famoso caso, que fascinou os surrealistas, se pronunciaram também, entre outros, Sartre, Simone de Beauvoir e o jovem Lacan. Tendo este último buscado com ele deslindar os motivos do crime paranoico. Jean Genet, por sua vez, nunca admitiu ter-se inspirado nas irmãs Papin para compor sua peça As Criadas (Les Bonnes). Essa referência em abismo tem a vantagem de evidenciar o contexto político e sociocultural no qual o tema do assassinato dos patrões pela(s) empregada(s) já se encontrava imerso quando o livro de Rendell foi escrito. Contudo, o que me interessa não é a adaptação propriamente dita – para tanto, eu deveria, no mínimo, ter lido o romance de Rendell! – mas o filme, de fato, magistral de Chabrol. Uma de suas mais admiráveis características sendo, a meu ver, a capacidade de criar na tela um ambiente perfeitamente acolhedor, cenários e movimentos de câmera compondo um filme em que temos vontade de habitar, que contrasta de forma perturbadora com a antipatia, a inquietante estranheza, ou repugnância provocadas pelos personagens que o povoam. De fato, nenhum deles parece ter sido posto em cena para que nos identifiquemos com ele, pelo menos não se nos distanciamos do estilo de vida da família burguesa.

Sophie Bonhomme é a nova empregada – magnificamente interpretada por Sandrine Bonnaire – contratada no sufoco por uma madame, dona de uma galeria de arte (Jacqueline Bisset). Precisando com urgência de alguém para o serviço doméstico em sua mansão isolada na Bretanha, após uma breve entrevista, ela decide empregar a moça de boa aparência e disponível, sem nem mesmo verificar suas referências. Em francês, o termo familiar para empregada doméstica é bonne-à-tout-faire, literalmente “boa-para-fazer-tudo”, geralmente abreviado: bonne; o que motiva, logo no início do filme, uma controvérsia sociolinguística entre pai e filha a propósito da chegada próxima da nova empregada. A jovem estudante Melinda (Virginie Ledoyen), embora demonstre certa tendência contestadora, como nesse diálogo em que questiona o uso da expressão humilhante pelo pai, sugerindo vocábulos alternativos, parece de resto, assim como seu irmão adolescente, perfeitamente adaptada ao ambiente familiar. O qual, com efeito, é de tipo liberal e perpassado por ternura, franqueza e confiança entre seus quatro membros. Como observou com perspicácia minha filha e co-espectadora: como em Parasita, o premiado filme de Bong Joon-ho (2019), o defeito maior dessa família burguesa é ser uma família burguesa. O patriarca (Jean-Pierre Cassel), diretor de fábrica, melômano, chega a ser chamado por sua filha, pelas costas, de fascista, mas trata-se de um exagero juvenil. O senhor Lelièvre, excetuando-se sua condição burguesa e alguns preconceitos conexos, como em relação à nova empregada, não é apresentado como um sujeito excessivamente autoritário.

A personagem fundamental da funcionária do Correio local, Jeanne, uma mulher invasiva – que Isabelle Huppert sabe tornar insuportável e verossímil –, faz sua aparição intrometida também logo no início do filme. E aos poucos vai revelando sua personalidade perturbada, ao passo que se torna amiga e cúmplice de Sophie. Logo aprendemos também que Jeanne, presa de uma curiosidade doentia sobre a família em questão, é detestada pelo senhor Lelièvre, o qual não deixou de se informar sobre os seus antecedentes, que, a seus olhos, a distinguem muito negativamente. A funcionária fora transferida para aquela pequena localidade, próxima à propriedade dos Lelièvre, após ter sido inocentada, por falta de provas, da acusação de maus-tratos, tendo causado a morte da própria filha de poucos anos.

De início, tudo vai muito bem, a despeito de algumas singularidades bizarras, Sophie, muito reservada, demonstra-se uma trabalhadora aplicada de que a família consegue extrair o máximo de proveito e se encontra satisfeita. Tanto é assim que começam a imaginar formas de ajudar a moça, oferecem, por exemplo, aulas de direção para que ela tenha maior autonomia e comodidade. Mas as tentativas são frustradas, ela arranja desculpas para não aceitar, ocultando o verdadeiro motivo. Sobretudo, Sophie não quer ser ajudada, não ao preço de ter seu analfabetismo revelado. Sempre pouco ou nada expressiva, tendo como resposta imediata a qualquer pergunta que lhe é feita um “eu não sei”, quando não está trabalhando, Sophie refugia-se em seu quarto, onde uma televisão a mantém enfeitiçada com seus programas de auditório e outras nulidades. Aliás, a TV do quarto de Sophie servirá para aproximá-la de Jeanne que, ao saber de sua existência, se convidará para assistirem juntas os filmes que não pode ver por não possuir uma e aos quais iniciará a doméstica. Paul Newman e Alain Delon representam sem dúvida uma distinção cultural a que Sophie passa a ter acesso por meio de Jeanne. Esta última, com efeito, assumirá o papel de irmã mais velha para a espécie de criançona que é a primeira, e poderá ajudá-la de fato. No que concerne à tensão descrita por Bourdieu entre distinção e conformidade – já que toda distinção provoca um afastamento do agente do seu grupo ou classe social que precisa ser negociado para que ele se ajuste – as duas mulheres se situam num equilíbrio bastante instável. Apesar do afastamento relativo à sua tendência psicótica, ou seja, de certo desajuste, o estilo de vida de Jeanne corresponde satisfatoriamente ao de uma funcionária de classe média baixa, que completou o ensino médio, lê jornais, gosta de cinema, dirige um carro popular. Ela, porém, ao contrário de Sophie, está sempre disposta a ultrapassar as barreiras sociais, os limites da boa educação, dos bons costumes. O que também a torna capaz de cruzar a barreira social que isola Sophie, regredindo, cantarolando uma musiquinha safada infantil, fazendo palhaçadas.

Com o passar do tempo, a angústia provocada em Sophie, e nos espectadores, pelas situações em que ela é confrontada às limitações secretas do seu analfabetismo, assim como pelos expedientes inteligentes ou loucos que ela encontra para sair delas, vão tornando a situação instável. A presença de Jeanne, com o desenvolvimento de uma intensa relação afetiva, passa a ser cada vez mais determinante. Ocorre que Sophie também tem um passado sinistro: foi igualmente inocentada, por falta de provas, da acusação de ter causado o incêndio em que seu pai inválido, o senhor Bonhomme, morreu. Ambas conhecem o passado criminoso uma da outra, se reconhecem nele, identificam-se: divertem-se maliciosamente com “a falta de provas” que garantiu sua liberdade. Um poderoso vínculo se estabelece entre as duas mulheres solitárias, perturbadas e desajustadas. Todavia, o adjetivo “diabólicas” do título brasileiro é uma apelação vulgar e muito inadequada. Por mais que as duas criminosas não sejam personagens talhadas para despertar a simpatia do espectador, nada no contexto do filme leva a associá-las ao Diabo. Não há nenhuma sugestão de possessão demoníaca, tampouco de premeditação maquiavélica. Há, sim, uma intensificação, uma potencialização, por meio da relação entre as duas mulheres, da distinção negativa, catastrófica e marginalizante representada pelo crime e pela loucura.

O segredo do analfabetismo de Sophie tendo sido descoberto por Melinda, esta é agredida e ameaçada pela empregada – se contasse aos pais, ela revelaria aos mesmos o segredo da sua gravidez, que aprendera bisbilhotando a conversa da moça com o noivo ao telefone. Quando retornam de férias e encontram a filha abalada, Melinda conta tudo aos pais. Diante da gravidade da ameaça feita à filha, deixando claro que sua decisão não tinha nada a ver com o analfabetismo pelo qual ela não seria responsável, o pai decide despedir imediatamente Sophie. Ele sobe ao quarto da empregada que está, como de hábito, sentada ao pé da cama em frente à TV. O patrão precisa desligá-la para obter sua atenção. O motivo e as condições da demissão não são abusivos, mas a ressalva patronal de que, na ausência de um contrato, não podem sofrer contestação é ilegalmente eloquente. Burlar o sistema fiscal e a legislação trabalhista, sobretudo pagando bem à empregada, é uma transgressão reservada a patrões como os Lelièvre, como mostra Bourdieu, sem má consciência, porque tolerada no campo social a que pertencem.

Sophie vai encontrar Jeanne que, ao saber que a amiga tinha sido despedida, além de dar vazão à sua maledicência habitual sobre a família Lelièvre de forma mais raivosa, a convida para vir instalar-se em sua casa e oferece-se para irem, naquela mesma noite, no seu carro, buscar as coisas dela sem mais tardar. Enquanto isso, a família Lelièvre está reunida na sala da mansão. Os quatro, divertidamente bem vestidos como se fossem a um teatro suntuoso, ou participar de uma cerimônia de gala, estão instalados diante de sua enorme televisão, assistindo a ópera Don Giovanni de Mozart, conduzida por Von Karajan, com o libreto bilíngue em mãos. Compartilham entre si, assegurando sua reprodução, esse máximo de distinção cultural, fazendo da sala de casa um espaço sacralizado para essa cerimônia estética. Quanto às duas moças, após se introduzirem discretamente na casa pela porta de serviço, a maníaca Jeanne começa a se excitar praticando alguns atos de delinquência como vingança contra os patrões da amiga. Ela acaba empunhando um dos fuzis que o senhor Lelièvre andara limpando, projetando ir caçar com a filha. A brincadeira ridícula de Jeanne, que nem sabe como funciona um fuzil, de repente, vira uma demonstração por parte de Sophie de como utilizar o armamento, posto que tinha observado bem o patrão. Sophie, com efeito, é uma exímia observadora, dotada também de uma excelente memória, seus únicos recursos para mascarar seu iletrismo. As qualidades de Sophie transformarão a cerimônia cultural da família num rito mais selvagem de caça, essa atividade, por tradição, tão simbolicamente reservada aos patrões.

Quase no final, bastante sonoro, do primeiro ato da ópera, ouvem-se barulhos na casa e supõe-se ser Sophie acompanhada de Jeanne. Não suportando a ideia de que a execrável funcionária dos Correios, que abria suas cartas e o confrontava com fofocas, podia estar em sua casa, o senhor Lelièvre vai até à cozinha, onde é abatido por Sophie que havia carregado o fuzil. O primeiro ato tendo chegado ao fim, o marido não tendo ainda retornado da cozinha e desconfiada de ter ouvido tiros, a mãe pede ao filho que vá até lá. O rapaz obedece, mas logo volta andando de costas sendo seguido pelas mulheres armadas. O segundo ato já começou, Don Giovanni, disfarçado de seu criado Leporello, canta a serenata para conquistar a empregada de Dona Elvira, enquanto Sophie e Jeanne executam o resto da família.

Ignoro se no romance de Rendell essas distinções culturais aparecem tão marcadas quanto no filme de Chabrol. Mas, se o romance foi publicado dois anos antes do livro de Bourdieu sobre o julgamento de gosto e a hierarquização cultural do espaço social, o filme de Chabrol foi concebido décadas depois, quando Bourdieu estava no auge de sua carreira e cada vez mais implicado na vida pública do país. Como quer que seja, tenham os roteiristas realmente pensado em Bourdieu e seu conceito de distinção cultural para fazer o filme ou não, o contexto social demonstrado no filme não é politizado em termos de luta de classes, senão de forma um tanto caricata. Fora as contestações inócuas da jovem Melinda, apenas o discurso meio delirante de Jeanne trafega sem método entre a inveja ou o ressentimento e a revolta social consciente das desigualdades e da exploração. Sophie, cujas falas não chegam a compor propriamente um discurso, é bastante alienada. Toda sua energia psíquica parece se concentrar no seu drama incapacitante do iletrismo, que ela se empenha em esconder e driblar. A raiva que sente de Melinda por ter descoberto seu segredo é a mesma que sente por toda a família, uma vez ele revelado. Seu comportamento é voltado para a manutenção de uma estratégia infantil de sobrevivência. E, com a intervenção de Jeanne, ela se expressará afirmando sua subjetividade através da aniquilação dos que a oprimem, não por serem patrões exploradores, mas por a impedirem de ser quem ela é – uma cripto-analfabeta. Desse ponto de vista, é significativo que na relação com Jeanne, que de burra não tem nada e a quem o iletrismo da amiga não deve ter escapado (temos de supor, porque isso não é sequer evidenciado para o espectador), em nenhum momento o assunto seja abordado. Ou seja, apenas com Jeanne ela pode ser ela mesma sem entraves, e vice-versa.

Uma cena bastante interessante do filme, porque acrescenta certa perturbação numa relação muito estereotipada das correspondências entre interesses ou competências e classe social, uma distinção inusitada, é quando Melinda encontra Jeanne com seu carro em pane na estrada. A jovem para o seu carro de herdeira e presta socorro, se debruçando sobre o motor, identificando o problema e declarando supreendentemente que gosta de mecânica. Ao que Jeanne, despeitada ao ponto de sequer se mostrar agradecida, replica também de forma surpreendente que, quanto a ela, ela gosta mesmo é de poesia. “Ah, de poesia?”, pergunta Melinda sem dar mostra de real interesse, desprezando Jeanne com educação, mais preocupada em limpar as mãos cheias de graxa na ausência de um pano. O incidente também tem sua importância no desfecho do filme, após o crime. Porque se não houve premeditação, haverá por parte das assassinas uma tentativa de não deixar provas que as incrimine. A aposta é na inteligência mútua, porém, ambas carecem de prudência – qualidade burguesa? –, são impulsivas demais. Ao fim, podemos admitir, Sophie Bonhomme matou a família Lelièvre porque não sabia ler nem escrever. E Jeanne, que sabia ler e escrever, matou a família Lelièvre por ressentimento, por niilismo? Ou juntas, compartilhando uma psicose, cometeram um crime paranoico?

Desta vez, a sociologia de Bourdieu se impôs a mim como chave para uma leitura conceitual do filme. É possível que de uma próxima vez outros aspectos me pareçam mais relevantes. Essa capacidade de gerar indefinidamente, inclusive para um mesmo sujeito, diferentes experiências estéticas, como se sabe, é uma característica dos grandes clássicos da cultura. Assim, ter feito um filme clássico sobre a luta pela distinção cultural, que culmina com o assassinato simbólico da cultura – Jeanne atira nos livros também – me pareceu aqui a grande realização de Chabrol.

[1] Pierre Bourdieu; A Distinção: crítica social do julgamento, Porto Alegre, Editora Zouk, 2007.

MULHERES DIABÓLICAS
LA CÉRÉMONIE
Dirigido por Claude Chabrol
França, Alemanha, 1995
Suspense, Crime, Mistério
Francês
Português & mais 5
Picture of Mônica Costa Netto

Mônica Costa Netto

(1966 ) nasceu e mora no Rio de Janeiro. É Mestre em Filosofia por Paris 8 (França), onde também graduou-se e foi doutoranda. Mãe de três filhos, trabalha como tradutora, intérprete e professora. Há muitos anos, desenha, pinta e escreve poemas, mas nunca expôs ou publicou.

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