Irene Solà, expoente romancista catalã, já vinha demonstrando em seus trabalhos anteriores, como em Canto eu e a montanha dança (2021), uma escrita marcada pelo entrelaçamento entre paisagem, memória e folclore. Com Te dei olhos e olhaste as trevas, traduzido por Luis Reyes Gil e publicado no Brasil pela Editora Mundaréu em 2024, além de ter sido finalista do Cercador Prize, ela apresenta uma linhagem de mulheres que vivem nas montanhas da Catalunha, cercadas pela ausência após um pacto que carrega um castigo geracional. Entre presente e passado, os acontecimentos cotidianos se tornam fantásticos, enquanto os mais aterrorizantes são relegados pelas personagens.
Bernadeta, uma mulher tão velha que nenhuma de suas descendentes sabe mais a sua idade, aguarda a sua morte no andar de cima da casa intocada. Enquanto suas “pálpebras de lagartixa” se fecham para um cochilo, sua tia Margarida a olha. Esta é a primeira imagem que temos ao acessar a narrativa que se passa em um único dia. A princípio, deveria ser uma história simples: as ascendentes de Bernadeta se organizam para dar uma festa, aguardando o momento da sua morte. A limpeza da casa, o cozinhar das comidas, o cuidado com a velha adoecida, no entanto, são permeados por acontecimentos do passado. Joana, a primeira mulher da linhagem de Bernadeta, buscando um “homem inteiro” para ser seu marido, faz um pacto com o Demônio. Ao encontrar Bernardí, último sobrevivente de uma família que foi devorada pelos lobos e outros monstros da floresta, Joana nota, no entanto, que faltava um dos dedos do pé de seu pretendente e por isso desfaz o seu pacto, o que levou a uma maldição geracional em seus descendentes. Como conta Irene Solà, a ideia surge do conto “L´hostal de la Lletja”, no livro El folklore de Rupit i Pruit.
Mas o bicho ruim não parecia entender, e Joana precisou explicar, “Pedi um homem inteiro, que fosse herdeiro e que tivesse um pedaço de terra e um teto, mas o Bernadi não é um homem inteiro”. O grande assador a olhava incrédulo. Joana emendou: “Ele não tem o mindinho do pé esquerdo”. Em seguida, ouviu-se um fragor e um estrondo terrível, e por quatro dias choveu a cântaros. (SOLÀ, 2024, p. 22)
Bernardí tinha uma casa, o Mas Clavell, onde a família de Joana se perpetuou. Deu à luz a sua primeira filha, Margarida, que nasceu sem um pedaço do coração. Depois nasce Blanca, que veio sem a língua. Sua última filha, Esperança, nasce sem o fígado. A partir desse momento percebe-se a maldição familiar que se fará presente em todos da família de Joana: a ausência
A cama de seus filhos estava vazia e os cobertores estavam frios, e a Margarida compreendeu. Sabia que, por causa do pacto que a Joana fizera e desfizeram com o diabo, faltava-lhe um quarto do coração, e a Blanca faltava-lhe a língua. Que aquela sua irmã amarelenta que se chamava Esperança havia nascido sem fígado. […] Mas quando seus filhos foram embora, a Margarida compreendeu que o que faltava ao Bartolomeu, o que sempre havia faltado em seu primogênito, a falta que ela procurava e procurava quando ele era criança e ao encontrar, por que estava escondida, era o amor que um filho deveria sentir por sua mãe. (SOLÀ, 2024, p. 105-106)
Solà se permite fazer uso da adjetividade exacerbada para descrever os ambientes e as personagens. As mulheres, especialmente as ascendentes, como Margarida, Joana, Àngela, Dolça e Blanca, estão sempre ligadas a características animalescas: Joana é descrita recorrentemente como uma égua desdentada; Àngela tinha uma expressão de javali; Margarida olhava com olhos de pinhões. Enquanto isso, a Casa é personificada e formada por cômodos que se aproximam a partes do corpo humano, com gengivas e dentes cerrados e uma espinha dorsal.
O vestíbulo do casarão era úmido e escuro, como uma goela; De paredes ásperas, que eram como a carne de dentro das bochechas. Com um teto de vigas, como um céu da boca listrado, e chão de pedra, uma língua gasta de tantos anos engolindo. (SOLÀ, 2024, p. 33)
A narrativa se aproxima do Realismo Fantástico, movimento literário que surge na década de 1960 na América Latina, tendo como seu principal autor o colombiano Gabriel García Márquez. Os elementos fantásticos se tornam algo comum e cotidiano, em uma percepção temporal cíclica e que segue tradições distantes da racionalidade moderna.
Em Te dei olhos e olhaste as trevas, para além de um Realismo Fantástico, pode-se compreender ainda mais a perspectiva feminina do fantástico através de um termo cunhado pela pesquisadora belga Anne Richter: o fantástico feminino. No ensaio Le fantastique féminin d’Ann Radcliffe à nos jours, de 1977, Richter utiliza esse termo para designar obras que retratam as mulheres se relacionando com o sobrenatural sem questioná-lo, já que estão desprovidas de qualquer ego semelhante ao masculino. A mulher, assim como demonstra Solà com suas personagens, está ligada primordial e espiritualmente com a natureza primitiva e compreendem a loucura e a irracionalidade como algo familiar. O fantástico, em Te dei olhos e olhaste as trevas, se expressa tanto na descrição das personagens e dos ambientes, quanto nos acontecimentos narrativos, seja naqueles em que as antecessoras se relacionam com o Diabo, seja nos momentos cotidianos de suas descendentes, que são observadas por elas:
A velha estendeu uma mão trêmula, e Marta então lhe deu sementes. Uma vermelha. Uma laranja e azul. Duas pequenas e brancas. Uma redonda com uma risca no meio. A Bernadete as engoliu. A marta voltou a encher o copo e jogou dentro dele uma moeda amarela, que ficou revirando dentro d’água como quem se afoga soltando bolhas. (SOLÀ, 2024, p. 30)
Além da fantasia fantástica, a narrativa se aproxima do horror. No ensaio Horror and the Idea of Everyday Life: On Skeptical Threats in Psycho and The birds, de 2010, Nickel compreende o horror de uma maneira epistemológica, constituído por dois elementos centrais: a aparição do mal sobrenatural ou do monstruoso e da intenção de causar aversão visceral no leitor. O primeiro ponto do horror é constante na realidade de Bernadeta e suas ascendentes. A relação das mulheres com o Diabo, personagem chamado por diversos nomes ao longo da narrativa, o que pode nos remeter à relação de Riobaldo com o “Coisa-Ruim” em Grande Sertão: Veredas (ROSA, 1956), é cotidiana e horizontal, ou seja, as mulheres se entendem como pares do Demônio e este aparece em suas vidas como um conhecido.
Francesc, marido de Margarida, observa a cumplicidade entre mulher e Diabo quando diz “uma vez o diabo e a mulher jogaram, e foi ela que ganhou”.
Enfiou-se dentro da caverna, guinchando como uma raposa, berrando “POR QUE VOCÊ ESTÁ INDO? POR QUE VOCÊ ESTÁ INDO?”. Arranhava o frio do interior da toca, o negror, a umidade, o chão. […] Ela o imaginava encolhido no escuro, cabisbaixo, queixoso, incapaz, “Covarde, covarde, covarde!”. (SOLÀ, 2024, 128)
A aversão visceral causada no leitor está nas cenas de violência presente na vida das antecessoras de Bernadeta e na asquerosidade dos lugares. A morte e a angústia permeiam a vida de todos os moradores do Mas Clavell. A personagem Margarida, filha primogênita de Joana, apresenta a vontade e a curiosidade pela morte constantemente na narrativa. Ligada fortemente à religião, Margarida tenta se redimir do pecado de sua mãe. A primogênita ora e condena todas as suas familiares pela mundanidade com a qual elas vivem. Apenas enxerga pureza no seu marido Francesc, e na morte, que finalmente a aproximaria de Deus. Aqui o catolicismo se confunde com o folclore. As rezas de Margarida se misturam com o matar de um bode para preparar a refeição. Os santos são encomendados para intervirem na luta contra os lobos que comeram a família de Bernadí. Folclore aqui se aproxima da conceituação feita por Carlos Rodrigues Brandão. O fato folclórico é formado pela “maneira de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação” (BRANDÃO, 1993).
Te dei olhos e olhaste as trevas, portanto, se demonstra um marco literário que tensiona os limites entre o real e o imaginário e articula o fantástico como expressão de uma memória coletiva feminina marcada pela ausência, pela corporeidade fragmentada e pela ancestralidade. A presença do “bicho ruim”, a animalização das personagens e a personificação da casa revelam uma poética do horror íntimo, em que o feminino é simultaneamente vulnerável e superior ao sobrenatural. Solà propõe uma reconfiguração do fantástico a partir de uma perspectiva de gênero, em que o pacto com o Diabo é menos uma transgressão e mais uma herança que molda corpos, afetos e espaços.
Edição: 1ª edição (2024)
Idioma: Português
Capa comum: 160 páginas
ISBN: 978-65-87955-27-8
Dimensão: 14 x 21 x 1cm
Sophia Nascimento
Estudante e pesquisadora da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, dedica seu trabalho a Estudos Literários, com enfoque nas obras que representam a vivência feminina.